domingo, 25 de novembro de 2007

WALTER RUTTMANN: "BERLIN", V

WALTER RUTTMANN: "BERLIN", IV

WALTER RUTTMANN: "BERLIN", III

WALTER RUTTMANN: "BERLIN", II

WALTER RUTTMANN: "BERLIN", I

WALTER RUTTMANN - OPUS I

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

SURREALISMO Textos Essenciais II

O SURREALISMO NO CINEMA
Portal para a “Vida Verdadeira "
"Nada me pareceu mais cativante, escreveu André Breton, do que a série de fotografias, publicadas há tempos por uma revista norte-americana, que reproduziam algumas das atitudes sucessivas tomadas por um homem no decorrer de uma noite de sono. Gostaria que o movimento do homem adormecido tivesse sido filmado sem interrupção e projectado a um ritmo fortemente acelerado." (Génese e perspectiva do surrealismo).
Nesta frase, o autor de O Amor Louco, demonstra com a sua habitual clarividência, a força que o cinema pode (e deve) ter para ser o melhor trampolim, a partir do qual o mundo moderno se lançará nas águas magnéticas e brilhantemente negras do subconsciente, da poesia, do sonho.
O cinema é surrealista por essência.
Os sonhos do homem adormecido perdem a sua natureza de sonho (tal como a consideram os defensores do verismo) para se transformarem em realidade perante os nossos olhos maravilhados.
Esta realidade é enriquecida por todo o seu conteúdo latente, torna-se absoluta, surreal.

EXPLICAÇÃO ABORRECIDA MAS NECESSÁRIA.
Diz-se habitualmente "negro" e os outros vêem "vermelho", fala-se de poesia e o nosso interlocutor pensa em Claudel, e mais frequentemente troçamos de alguém que nos agradeceu porque pensou que estava a receber flores.
Então – para começar – é melhor entendermo-nos acerca de duas expressões que reaparecerão frequentemente.
Quando falo de surrealismo, digo: libertação do homem através da busca e do descobrimento do “funcionamento real do pensamento”, destruição das ideias cartesianas senis segundo as quais teriam sido colocados, ao longo da vida do homem, limites insuperáveis, para que este pudesse confiar no “adquirido”, recusando qualquer intrusão libertadora para além do quotidiano manifesto. "O surrealismo fundamenta-se na crença na realidade superior de certas formas de associação até ele negligenciadas, na omnipotência do sonho, e no livre exercício do pensamento. Tende a destruir definitivamente todos os restantes mecanismos psíquicos, e a substitui-los na resolução dos principais problemas da vida." (André BRETON, Primeiro Manifesto do Surrealismo).
Coveiros com cabeças de cadáver dedicam-se periodicamente à tarefa de sepultar o surrealismo, o qual, evidentemente, não se deixa colocar no caixão. É um futuro mais vivo do que jamais esteve, para desespero dos seus pálidos inimigos. Mas a confusão tem sido cuidadosamente mantida por estes, e encontramo-nos infelizmente na obrigação, uma vez mais e sempre, de fazer actualizações.
Quando falo em surrealismo, não tem absolutamente nada a ver com as Folies‑Bergère, nem com Salvador Dalí e o papa seu acólito, nem com os padres, sejam lá de que religião forem, nem com os que gritam qual deles mais alto para sufocar toda a força verdadeira brincando aos espíritos abertos, nem aos estetas nas suas alcovas, recusando-se a purificar as mãos na revolta, nem com os macacos dos snobs e dos efeminados, nem com a carneirada de toda a espécie, nem com as velhas beatas podres, nem com…, etc., etc.
Quando falo de cinema, digo: o meio de expressão mais completo, mais rico, mais livre do que qualquer outro e sem qualquer relação com a Arte (com A maiúsculo), nem com a Técnica (com T maiúsculo), nem com as prédicas ou com o comércio, nem com as danças havaianas, nem com as análises altamente psicológicas de velhas solteironas, nem com Franco, nem com Estaline, nem com esquimós congelados, nem com as sotainas de são Pedro e de são Paulo, nem com o ecrã vazio, nem com a conversa mole, nem com a estupidificação calculada e colectiva, nem com a cadeira afundada pelo aborrecimento, nem com... etc., etc.
Reconheço que a minha opinião acerca do cinema possa parecer bastante restritiva, mas na realidade é muito abrangente, porque são todos estes "nem", juntamente com milhares de outros, que sufocam com as suas proibições os lampejos que os ecrãs poderiam projectar. O cinema que eu amo é o cinema possível, do qual só temos até hoje alguns exemplos raros. O resto, os quilómetros de película impressionada, têm para mim tanto interesse como a cor do penacho de Henrique IV.
O meu cinema é feito das suas possibilidades.
Este cinema é surrealista.

CONTEÚDO MANIFIESTO – CONTEÚDO LATENTE.
O que é que existe de mais enganador do que a vida? Os nossos sentidos captam, de forma inegável, todas as suas manifestações e a o conteúdo dos dias e das noites. Mas é incontestável que os nossos sentidos são incompletos e que vemos, tocamos, sentimos coisas que são muito mais do que aquilo que julgamos que são. A vida forma pregas sinuosas que ocultam determinados aspectos, ao mesmo tempo que produzem um som magnífico de riqueza e de insólito. Unicamente a imaginação, o sonho, o subconsciente e o inconsciente penetram por essas pregas, revelando as roupagens admiráveis e a pele, que vestem o desinteressante esqueleto da realidade fragmentada.
Há séculos que se urde o maior drama da humanidade: a sociedade defende-se eliminando sistematicamente o conteúdo latente da vida, com a finalidade de embrutecer no quotidiano sem maravilhoso, o homem que se torna escravo e procura a saída (porque a necessidade do maravilhoso é inegável) num além adornado de anjinhos rechonchudos e em romances com duquesas, escadas douradas e mordomos respeitosos. Alcançar o conteúdo latente da vida não é uma fuga, antes pelo contrário. Quem descobre "a vida absoluta", entra na realidade, e a ela vai buscar as forças necessárias contra os seus inimigos de sempre.
Só este homem, que com a ponta dos dedos vai tacteando e acaba por agarrar com as mãos todas o resplandecente universo total e real, que recusa as escolas porque, a partir do momento em que se conhece, já não precisa delas, que vê através dos seres e das coisas, que fala com as árvores e as correntes de ar, que libertou o seu espírito, que ama e se revolta, só este homem vive.
Os outros que, apesar de todos os esforços dos espíritos livres, representam a imensa maioria, limitam-se ao conteúdo manifesto que admiram ou abominam com a mesma paixão. E se no seu caminho surge um obstáculo que lhes parece inexplicável, esbarram nele e perdem-se definitivamente.
"Penso em Marcel Duchamp indo ao encontro dos amigos para lhes mostrar uma gaiola que para eles parecia sem pássaro e meio cheia de bocados de açúcar e pedindo-lhes que levantassem a gaiola, que eles se admiravam de achar tão pesada porque o que tinham tomado por torrões de açúcar eram na realidade bocadinhos de mármore que Duchamp, com grande despesa, tinha mandado cortar com essas dimensões." (André BRETON, Os passos perdidos).
Pela sua essência, o cinema está cheio dos torrões de Duchamp. É o meio de expressão sonhado do conteúdo latente da vida. Levanta a gaiola e faz sentir o seu peso, obriga todos os espectadores a não ver o conteúdo manifesto‑açúcar.
Van Gogh, numa das suas cartas ao irmão, exprimia a sua vontade apaixonada de não pintar um simples tronco de árvore, tal como podemos vê-lo, mas um tronco de árvore com todos os seus segredos invioláveis, raízes, ar, seiva, nascimento, morte. O cinema pode mostrar tudo isso, pode descer debaixo de terra, subir até aos ramos mais altos, entrar na árvore, acompanhar por alguns segundos o seu nascimento e morte. E isso é muito mais autêntico do que na vida quotidiana, isso é real. A árvore completa na sua duração e no seu espaço, como os seus mistérios, está presente, tal como está presente o candeeiro no meio da rua. O que é verdade para a árvore – tema de interesse limitado – é-o mais ainda para o homem, interesse fulcral para qualquer poeta, pintor ou cineasta.
É aliás essa aparência de vida "verdadeira" que constitui um dos factores principais da atracção irresistível que o cinema exerce sobre as multidões. Não acreditamos no sonho porque o vimos com os olhos fechados, recusamos a imaginação porque se disse que era perigosa, encarceram-se os loucos porque, segundo parece, seriam inimigos da sociedade, mas aceita-se o cinema. Ali nada é falso, as pessoas vivem no ecrã como vocês ou como eu e, posso jurar que se lhes acontecem coisas inimagináveis, é porque podem acontecer. O público diz: “É verdade porque se vê!”
Um poema é feito de letras, um quadro permanece imóvel, portanto – sempre para o grande público – não existe. O cinema mostra seres de carne e osso, por tanto mesmo o sonho destas personagens ganha carne e osso. O cinema atinge o "ponto do espírito onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, deixam de ser vistos contraditoriamente." (A.BRETON, Segundo Manifesto do Surrealismo).
O conteúdo manifesto da vida é pela primeira vez colocado no mesmo plano do seu conteúdo latente, e o resultado é a surrealidade, na qual o público só acredita no cinema. O sonho já não é um parêntesis na vida porque a memória, inexistente na maioria dos casos, não é necessária para a recepção e para o enriquecimento cinematográfico. O natural absoluto do cinema, semelhante ao do sonho, é perfeitamente acessível e aceitável para toda a gente.
O cinema podia ter sido e pode ainda transformar-se no “sonho colectivo”.
Atenção: não quero dizer com isto que o surrealismo deva ser proposto a todo a gente, de uma só vez e por intermédio do cinema. Ainda não chegámos aí e só uma longa preparação poderia obter resultados proveitosos; mas creio fanaticamente no povo, naqueles que farão a Revolução social, na sua pureza e na sua enorme receptividade. Penso que são capazes de compreender que a Revolução social separada da Revolução moral, espiritual e poética (uso esta expressão no seu sentido mais lato), não tem a mais pequena hipótese de alcançar o seu objectivo, que é a libertação total do homem. Armadas com o conteúdo latente da vida, que a sociedade sempre dissimulou tão tenazmente, as massas serão capazes de fazer verdadeiros milagres que nada deverão às forças extraterrestres (que, aliás, não existem).
Longe de mim o pensamento dos agrupamentos, escolas e outras ninharias, que transmitem sons desastrosos de cadeias, de chefes e deveres. Trata-se de uma tomada de consciência que só o surrealismo, força única do homem, pode oferecer. O recrutamento é uma doença da nossa época extremamente doentia: a tomada de consciência virá do interior dos homens, eles lançarão para a batalha que é travada pelas forças da superfície a contribuição considerável das “forças que o espírito encerra". Estou persuadido de que o cinema pode fazer muito por esta tomada de consciência, porque o cinema é verdadeiro, e as paisagens que podemos admirar a partir do portal que se abre para a "verdadeira vida" são visíveis para todos.
É evidente que falo de um cinema ideal e infelizmente quase ilusório na actualidade, mas isso não nos deve impedir de lutar. Um cinema do nível de “L’Age d’Or”, seria una estaca no corpo desintegrado dos representantes da sociedade. Eles, aliás, compreenderam-no. E como “L’Age d’Or” é o exemplo perfeito que me ocorre ao escrever, teria curiosidade em ver o efeito que faria este filme se fosse projectado comercialmente nas salas de bairro. Imagino que as pessoas, embrutecidas pelas imbecilidades que lhes oferecem, urrariam, mas entre elas encontrar-se-ia uma ou duas que reteriam qualquer coisa. Com paciência e multiplicando os filmes deste género, a percentagem aumentaria regularmente, e é muito possível que ao fim de um certo tempo, o público protestasse quando lhes fossem oferecidas comédias "cheias de encanto" ou dramas "profundamente humanos".
Em 1951, apresentei “Un Chien Andalou” num cineclube dos arredores de Paris. O público, em grande parte composto por operários, reagiu de diversas maneiras e – tenho de o confessar – mais desfavoravelmente; contudo, durante os debates que se seguiram à projecção, coloquei a pergunta: "Não há ninguém que tenha gostado?” Uma mulher (quarentona, com aspecto de mulher a dias e habituada ao cinema dos sábados à tarde) respondeu: "Eu! " Insisti: "Porquê?", e ela deu a melhor resposta possível, a resposta que supera todos os discursos analíticos: “Eu sei lá! Gosto; é assim, pronto."
Esta recordação enche-me de esperança.
Ado Kyrou, in “Le Surrealisme au Cinéma, Ed. Terrain Vague, Paris, 1963.

OS SURREALISTAS E O CINEMA
(Introdução a uma antologia de textos de surrealistas sobre cinema)

Postulado previsível: impossível citar tudo. Impossível – e para isso seriam necessários vários volumes – dar lugar a tudo o que Aragon, Artaud, Breton, Desnos… e todos aqueles que puderam reivindicar, ainda que brevemente, a sua qualidade de surrealista, ou no mínimo, de um certo “companheirismo”, escreveram sobre cinema. Uma parte não negligenciável desses textos está hoje perfeitamente acessível e é frequentemente reproduzida. Lembremo-nos de Desnos (“Cinema”, Gallimard, 1966) ou de Artaud (tomo III das “Œuvres Complètes”, reeditado em 1970), ou ainda Buñuel, cujas planificações para “L’Age d’Or” e “Un Chien Andalou” foram publicadas várias vezes (
[1]). Não há, portanto, qualquer urgência em apresentar de novo ao leitor esses documentos que são bastante conhecidos, quando outros aguardam impacientemente serem retirados da sombra e redescobertos.
Uma vez efectuada esta verificação, que critério adoptar? Era indiscutivelmente necessário dar a palavra pelo menos uma vez a todos os surrealistas (ou aparentados) que escreveram sobre ou para o cinema, mesmo aqueles cujos textos são facilmente consultáveis. Sem reproduzir inutilmente o conjunto dos seus escritos, seria inconcebível, com efeito, afastar completamente Desnos ou Artaud de uma compilação destas. Seria mesmo impensável, apesar de ter sido já publicado várias vezes, não dar um lugar ao “Manifesto de L’Age d’ Or”, porque é praticamente o único texto grande onde o movimento surrealista se exprimiu, em bloco, sobre o cinema. Mas lado a lado com estas presenças inevitáveis, assim como de Aragon, Breton ou Soupault, outras participações menos esperadas, não deixavam de ser igualmente indispensáveis: era necessário fazer ouvir a voz, por exemplo, de René Crevel e de Paul Eluard, de Maxime Alexandre e de Michel Leiris, de Benjamin Péret e de Jacques Baron.
Só que nem toda estas vozes cantam a mesma canção. E depois, no espaço de uma geração, a tonalidade do discurso mudou muito: entre 1925 e 1950, a alegria cedeu muitas vezes à amargura. Relativamente ao cinema, a palavra surrealista não é inequívoca, longe disso. Para conseguir lançar luz sobre o assunto, pareceu oportuno arrumar, por hipótese, esta quantidade de textos dentro de um certo número de terrenos de eleição. Cinco terrenos privilegiados (e a lista não está, de modo algum, fechada), a que chamaremos: a festa – a sede da conquista – os sonhos – o desencantamento e a nostalgia – a reflexão e o estudo. Planificação de simples comodidade, mas que requer um mínimo de comentário.

A FESTA: é a época da descoberta dos filmes, os primeiros entusiasmos. Festa dos ecrãs e das salas obscuras. Ali vão as pessoas deslumbrar-se com o cinema americano: Charlot, principalmente, mas também os “serials” e, mais tarde, Stroheim, depois os Irmãos Marx, etc. Festa dos filmes preferidos, revistos vinte vezes, comentados febrilmente, conhecidos quase de cor. Culto apaixonado, mas que se mantém exterior: período de contemplação. Os surrealistas não sonham de todo, pelo menos não por enquanto, com o cinema como um meio de expressão e de acção.

A SEDE DE CONQUISTA: são as primeiras tentativas para passar a rampa, para entrar no ecrã, para deixar de ser espectador. Tentativas pouco numerosas – Desnos e Man Ray, Artaud, Hugnet, Buñuel –, mas pode acreditar-se que não estaríamos senão no princípio, uma partida para a grande conquista. Todas as ilusões são ainda permitidas. A fusão esperada entre o surrealismo e o cinema parece estar para breve.

OS SONHOS: período de incerteza onde tudo podia oscilar alegremente, mas cujo alcance adquire actualmente valor de sinal negativo. Os sonhos, a este nível, são representados pela massa considerável dos guiões não rodados. Cada guião era o sonho de um filme possível ou impossível. Sem deixar de ser um sonho, o guião surrealista irá tornar-se pouco a pouco uma espécie de género autónomo, que nunca irá desaparecer totalmente.

O DESENCANTO E A NOSTALGIA: o prolongamento indefinido pela espera dos sonhos, para além da industrialização do sonoro, para além da guerra, acabou finalmente por derrotar a esperança durante tanto tempo acalentada. Cerca de 1950 e depois, é o tempo da amargura. Não é que se deixe de amar o cinema; deixa-se – entre os sobreviventes do movimento – de depositar nele uma esperança revolucionária e apaixonada. E aproxima-se a época dos balanços.

A REFLEXÃO E O ESTUDO: não estavam ausentes do tempo da festa e dos sonhos, mas é obvio que é depois do desengano que começam a proliferar. Marcha-atrás que não deixava de estar isenta de paixão, que não era forçosamente doutoral. Sobre a grande esperança abortada, começava-se a reflectir e – de acordo com a fórmula consagrada – “não era assim tão triste”.

[1] Cf. L’Avant-Scène du Cinema, nº 27-28, Junho-Julho 1963 e L’Occhio tagliato, ed. Martano, Turim, 1972.
Alain e Odette VIRMAUX, in “Les Surrealistes et le Cinéma », Ed. Seghers, Paris, 1976

LOUIS ARAGON: “ACERCA DO CENÁRIO”

Esse grande demónio de dentes brancos, de braços nus, fala no ecrã uma língua desconhecida, mas que é a do amor. Os homens de todos os países compreendem-na e comovem-se mais com o drama representado em frente de uma parede liricamente ornamentada com cartazes, do que perante a tragédia ilustre a que nos convida o mais subtil dos actores em frente do mais faustoso dos cenários. Aqui, o trompe l’oeil falha: o sentimento nu triunfa e o cenário deve igualá-lo em força poética para nos tocar o coração.
A porta de um bar que bate e sobre o vidro as iniciais de palavras ilegíveis e maravilhosas, ou a vertiginosa fachada de mil olhos da casa de trinta andares, ou o expositor exaltante de latas de conservas (quem foi o grande artista que fez esta composição?), ou aquele balcão com a prateleira de garrafas, que embebeda só de se olhar: tudo fundos tão novos, apesar de cem vezes repetidos, que criam uma poesia nova para os corações dignos de sentirem intensamente e diante deles poderão de agora em diante desenrolar-se as dez ou doze histórias desde sempre contadas aos homens desde a invenção do fogo e do amor, sem nunca cansar as sensibilidades deste tempo que se irritam com os crepúsculos, os castelos góticos e as paisagens rústicas.
Já basta o tempo durante o qual seguimos os nossos irmãos mais velhos por sobre os cadáveres doutras civilizações. Chegou agora o tempo da vida. Não iremos mais a Bayreuth ou a Ravenne comover-nos com Barris. Mais belos nos parecem os nomes de Toronto ou de Minneapolis. Alguém falou da magia moderna. Como explicar melhor este poder sobre-humano, despótico que exercem, mesmo sobre aqueles que os não reconhecem, esses elementos até hoje desacreditados das pessoas de bom gosto, e que são os mais fortes contra as almas menos sensíveis ao encantamento das projecções?
Antes do aparecimento do cinematógrafo, era uma raridade que algum artista ousasse servir-se da falsa harmonia das máquinas e da beleza obsessiva das inscrições comerciais, dos cartazes, das maiúsculas evocadoras, dos objectos realmente vulgares, de tudo o que canta a nossa vida e não qualquer convenção artificial, que ignora a carne enlatada ou a lata de graxa. Estes precursores corajosos, quer fossem pintores ou poetas, que eram capazes de se deixar comover perante um jornal ou um maço de cigarros, assistem hoje ao seu próprio triunfo, quando o público estremece e comunica com eles perante esses mesmos cenários cuja beleza eles tinham sabido antever. Eles conhecem o fascínio dos hieróglifos inscritos nas paredes, quer tenham sido traçados por Ange no final de um festim ou impostos pelo destino numa obsessão irónica no caminho de um herói infeliz. Estas letras que fazem o elogio de um sabão têm o valor dos caracteres nos obeliscos ou das inscrições de um livro de magia negra: elas falam da fatalidade da época. Nós já as tínhamos encontrado, elementos de arte em Picasso, Georges Braque ou Juan Gris. Antes deles, Baudelaire sabia o partido que se pode tirar de um cartaz. O autor imortal de “Rei Ubu”, Alfred Jarry, tinha utilizado alguns fragmentos desta poesia moderna. Mas só o cinema, que fala directamente ao povo, é que podia impor estas fontes novas de esplendor humano a uma humanidade que se mantém rebelde àqueles que lhe procuram o coração.
É necessário abrir os olhos frente ao ecrã, é preciso analisar o sentimento que nos transporta, e raciocinar para descobrir a causa dessa sublimação de nós próprios. Que nova sedução encontramos nós, que estamos cansados de teatro, nessa sinfonia em branco e negro, mais pobre de meios, privada da vertigem verbal e da perspectiva do palco? Não é o espectáculo das paixões eternamente semelhantes, nem – como teríamos sido tentados a acreditar – a fiel reprodução de uma natureza tal como a Agência Cook coloca ao nosso alcance, mas a magnificação desses objectos que sem artifício o nosso fraco espírito não conseguiria fazer ascender à vida superior da poesia. A prova está no lamentável aborrecimento que provocam os filmes que vão buscar os elementos do seu lirismo a uma reserva esburacada de velharias poéticas, já reconhecidas e arquivadas: filmes históricos, filmes onde os amantes se saturam de cenas ao luar, montanhas ou oceanos, filmes exóticos, filmes nascidos de todas as convenções passadas. Toda a nossa emoção subiste por aquelas amadas velhas aventuras americanas que relatam a vida quotidiana e que elevam a um pico dramático uma nota de banco sobre a qual se concentra a atenção, uma mesa onde repousa um revólver, uma garrafa que se tornará numa arma se for caso disso, um lenço revelador do crime, uma máquina de escrever que é o horizonte de um escritório, a terrível fita dos telegramas que se desenrola revelando números mágicos que enriquecem ou matam banqueiros. Ah! Essa parede quadriculada de” Loups” sobre a qual o homem da Bolsa, em mangas de camisa, escrevia o curso dos valores! E aquela máquina contra a qual se encostava “Charlot Bombeiro!”
As crianças, poetas sem ser artistas, fixam por vezes um objecto até que ele cresça pela atenção de que é alvo, cresça tanto que ocupe todo o seu campo visual, ganhe um cariz misterioso e perca toda a correlação com qualquer tipo de finalidade. Ou então repetem incansavelmente uma palavra, a tal ponto que ela se liberta de todo e qualquer sentido para ficar apenas um vocábulo pungente e sem finalidade, que chega ao ponto de lhes provocar lágrimas. Da mesma forma, no ecrã, esses objectos que ainda há pouco eram simples mesas ou blocos de recibos, se transformam a ponto de ganharem significados ameaçadores ou enigmáticos. O teatro é completamente impotente para atingir uma tal concentração emotiva.
Dotar de um valor poético o que não o possuía ainda, limitar a seu belo prazer o campo objectivo para intensificar a expressão, eis duas propriedades que contribuem para fazer do cenário cinematográfico a moldura adequada da beleza moderna.
Se o cinema, neste momento, não se mostra sempre o poderoso evocador que poderia ser, até mesmo nesses filmes americanos, os que melhor permitem destacar uma poesia de ecrã da confusão das adaptações teatrais, é porque os realizadores, por vezes com o sentimento agudo da sua beleza, não conhecem as suas condições filosóficas. Eu gostaria que um realizador fosse um poeta e um filósofo, mas também o espectador que avalia a sua obra. Para apreciar plenamente por exemplo, “Charlot Músico”, creio que é indispensável conhecer e amar os quadros da época azul de Pablo Picasso, onde os Arlequins de ancas magras olham para mulheres que se penteiam, demasiado direitas, ter lido Kant e Nietzsche, e acreditar que se tem um coração mais elevado do que o de todos os homens. Perderão o vosso tempo a ver “Mon Gentilhomme Batailleur”, se não tiverem primeiro lido a Filosofia do Mobiliário, de Edgar-Allan Põe e sem conhecer as aventuras de Arthur Gordon-Pym, que prazer poderão os vossos olhos encontrar em “Le Naufrage de l’Alden-Bess”? É preciso ter olhado assim através de uma estética mil filmes imperfeitos para então se poder procurar extrair as suas belezas, elementos de síntese para uma melhor realização. O cinema é a única escola de cinema, meditem neste programa. É lá que encontrarão os materiais úteis, mas com a condição de os saber identificar. Esta novidade não é assim tão presunçosa como possa parecer: Charlie Chaplin reúne as condições que eu gostaria de ver exigir. Se precisarem de um modelo, inspirem-se nele. Só ele procurou o significado íntimo do cinema e, preservando sempre nas suas experiências, levou o cómico até ao absurdo e ao trágico com igual talento. O cenário onde Charlot reúne os elementos em redor da sua personagem participa intimamente na acção; nada ali é inútil e nada é também indispensável. O cenário é a própria visão que Charlot tem do mundo, com a descoberta da mecânica e das suas leis, que perseguem o herói a tal ponto que, por uma inversão dos valores, qualquer objecto inanimado se torna para ele um ser vivo e qualquer pessoa humana um manequim cuja manivela é preciso encontrar. Drama ou comédia, à vontade do espectador, a acção limita-se à luta entre o mundo exterior e o homem. Este esforça-se por penetrar nas aparências ou deixa-se lentamente achincalhar por elas e desencadeia com isso mil cataclismos sociais, consequências de alguma alterações no cenário. Peço que se estude a composição do cenário em qualquer “Charlot”.
Que o cinema esteja atento: é belo estar-se despojado de tudo o que é verbal, mas neste caso, é necessário que a arte consiga suplantar a palavra e isso é mais do que a representação exacta da vida. É a sua transposição segundo uma sensibilidade superior. O cinema, mestre de todas as deformações, tentou timidamente esse processo que seduziu todos os nossos grandes pintores, desde Ingres. Um espírito independente fez-se seu defensor, com projectos audaciosos, ainda por realizar. Mas o cinema tende excessivamente a ser uma sequência rápida de fotografias. O ideal cinegráfico não é o chavão bonito: por isso condeno violentamente esses filmes italianos que já estiveram na moda, mas dos quais sentimos hoje o não-valor poético, a nulidade exaltante. Exigir aos realizadores que tenham uma estética e um sentido da beleza, não basta: não sairíamos do mesmo sítio e o tempo ultrapassaria aqueles que não soubessem acompanhá-lo. É-lhes necessária uma estética audaciosa e nova e o sentimento da beleza moderna. Nesta condição, o cinema libertar-se-á de todas as associações excêntricas, impuras e funestas que o aparentam ao teatro do qual ele é o irredutível inimigo.
É indispensável que o cinema conquiste um lugar nas preocupações das vanguardas artísticas. Elas possuem decoradores, pintores, escultores. É a eles que se deverá apelar se quisermos introduzir qualquer pureza na arte do movimento e da luz. Quererem reconciliar-se com os académicos, com os actores consagrados, isso é loucura, anacronismo. Esta arte é demasiado visceralmente deste tempo para confiar o seu futuro aos homens de ontem. Procurem apoios para a frente. E não temam chocar o público que até agora vos dirigiu. Eu sei que aqueles a quem cabe esta tarefa deverão esperar incompreensão, desprezo, ódio. Mas nada disso devem temer. Que coisa bela, um filme vaiado pela multidão! Nunca vi no cinema o público fazer outra coisa do que divertir-se. Já é tempo de o esbofetear para ver se tem sangue debaixo da pele. Falta ainda ao cinema a consagração das assobiadelas para que ele ganhe a consideração das pessoas de coração. Concedam-lha, para que finalmente surja a pureza a atrair os escarros! Quando é que, perante um ecrã nu de projecção, sob a simples luz da lanterna, teremos nós esse sentimento da virgindade temível,
A preocupação branca da nossa tela?
Ó pureza, pureza!
*

* Louis Aragon , em Le Film, Setembro de 1918; texto acompanhado de uma “chapelada” de apresentação de Delluc que merece ser reproduzida:
“É com grande alegria que publicamos estas páginas novas de Louis Aragon. Novas, sim, são-no pelas ideias e as impressões que transmitem. Novas igualmente pelo sabor penetrante onde se reconhece o estilo da nossa jovem literatura que desperta. Louis Aragon, poeta, manifesta-se nessas jovens revistas de vanguarda, como Sic, onde aparecem, ao lado de alguns oportunistas, sensibilidades de alto gosto. Os seus espíritos delicados gostam muito destas compilações de ensaios modernos que revelam com tanta facilidade o que o amanhã fará, ou, infelizmente, o que o passado não fez.
“Foi aí, confesso, que encontrei as compreensões mais fulgurantes do cinema.
“Os jovens espíritos audaciosos estão no cinema perfeitamente à vontade. Reconhecem nele a primeira realização das suas investigações Não conseguiu o cinema já explicar todas as pretensas desordens da pintura? Do impressionismo ao cubismo, todos os jogos de tons, de linhas e de planos são prodigiosamente analisados pela moving picture. Também a poesia aí se concilia e mesmo a música. Mas só muito raramente se diz tudo isso. Porque de que serve falar, quando se tem praticamente a certeza de não ser ouvido?
“Ofereço como uma preciosidade as páginas de Louis Aragon aos nossos leitores de hoje. E ofereço-as ainda mais àqueles que mais tarde terão a curiosidade – depois da nossa revolução – de folhear a Film do mês de Setembro de 1918.
Louis Delluc”

O texto de Aragon e a “chapelada” de Delluc foram reproduzidos, quarenta e cinco anos mais tarde, no nº LIX (1962) da “revista artística e literária” Le Point editada em Souillac e em Mulhouse; número especial consagrado às “constantes do cinema francês” (p. 25-33). Uma nota (provavelmente e de G. Sadoul) precisava que o texto de Aragon “Acerca do cenário” constituía “o primeiro artigo publicado por ele.” (ibid. P. 25).

PHILIPPE SOUPAULT: “O CINEMA U.S.A. (1)”

No momento em que todos os olhos dos franceses estavam cansados de ver e rever nos palcos dos teatros as eternas e idênticas “cenas da vida”, em que só os musicais podiam ainda comover um pouco e por alguns instantes os nossos pobres corações ressequidos pela poesia, nasceu o cinema.
Mas em breve a decepção foi mais forte do que se poderia imaginar.
Os filmes eram lamentáveis, insignificantes e aborrecidos. Nem sequer eram tão parvos que fizessem chorar, os autores dos argumentos queriam à viva força atingir o povo, esse povo que, se costuma dizer que gosta de melodramas e de comédias sentimentais. Então os inteligentes realizadores, para provocar uma corrente de lágrimas, semearam sobre a gelatina dos filmes pequenas flores azuis.
O resultado não se fez esperar. Todos os espectadores desataram a chorar, mas de riso. Via-se uma menina roubada por terríveis vilãos e encontrada por acaso pelos pais; uma pobre mãe de família e a sua dúzia de filhos, espancada por um brutal marido bêbado e vingada finalmente pelo álcool e pelo delirium tremens. Como diz uma antiga e triste canção: “Era bonito, mas era triste, o capitão dos bombeiros chorava para dentro do capacete.”
Nada mais era possível.
O aborrecimento das noites que se arrastavam como o fumo de cigarros e que esticavam os braços, espreguiçando-se até caírem de sono, invadia as vidas ardentes dos jovens, meus amigos.
Caminhávamos nas ruas desertas e frias à procura de um acidente, de um encontro, da vida. Para nos distrairmos tínhamos de atrelar a imaginação aos sonhos sensacionais. Os jornais, que são mais coloridos ainda do que as cartas geográficas, distraíam-nos durante uns instantes. Por uns tostões percorríamos o mundo inteiro e assistíamos aos dramas maravilhosos e sangrentos que iluminam por um momento certos pontos do globo. Tínhamos sede, uma sede terrível dessa vida estranha e forte, dessa vida que bebíamos como leite.
Um de nós, o mais forte, Jacques Vaché, gritava: “Vou ser antes caçador ou ladrão ou pesquisador ou caçador ou mineiro ou tosquiador.”
Um dia vimos grandes cartazes compridos como serpentes estenderem-se pelas paredes.
A cada esquina, um homem, com a cara coberta com um lenço vermelho, apontava uma pistola aos pacíficos transeuntes.
Parecia-nos ouvir galopes, rugidos de motores, estampidos e gritos de morte.
Precipitámo-nos para o cinema e percebemos que tudo tinha mudado.
O sorriso de Pearl White apareceu no ecrã; esse sorriso quase feroz anunciava os sobressaltos de um mundo novo.
Compreendíamos finalmente que o cinema não era apenas um brinquedo mecânico aperfeiçoado mas a terrível e magnífica bandeira da vida.
As pequenas salas sombrias onde nos sentávamos tornaram-se o teatro das nossas gargalhadas, das nossas iras e dos nossos grandes movimentos de orgulho.
Perante os nossos olhos agigantados líamos os crimes, as partidas, os fenómenos ou, apesar de tudo e sobretudo, a poesia da nossa época.
Não compreendíamos o que se passava. Vivíamos com rapidez, com paixão. Foi uma época muito bela. Sem dúvida, muitos outros elementos contribuíram para a sua beleza, mas o cinema U.S.A. foi um dos mais belos adereços.
Guardei recordações desses filmes que são para mim, ainda hoje, simpáticos bibelots. Para meu prazer recordei sucessivamente:

“O HOMEM DOS OLHOS CLAROS” (WILLIAM HART)
“Este homem que corre e que luta pára algumas vezes nas clareiras ou nos planaltos. À beira das florestas, lança um olhar de desprezo para as planícies. Embalar alguém nos seus braços ou torcer o pescoço ao inimigo. O ódio é talvez a única razão de existir para os homens de olhos claros.
“Mas este homem é demasiado sincero. Ignora a alegria de viver uma vida dupla.
“É muito mais suave apertar a mão ao seu mais caro inimigo do que estrangulá-lo.
“As lutas e os corpo a corpo irão sempre divertir-nos.
“Alguém vai morrer.
“De quem é a vez?”

AO ABRIGO DAS LEIS
Os olhos dos loucos e a sua embriaguês lembram borboletas.
Esta mulher que bebe conhece apenas o fumo ligeiro dos sues desejos. Gosto dos ranger de dentes, das raivas pálidas e desta cólera brusca.
Um senhor irrepreensível traz-lhe rosas. Despedace-as com as suas mãos brancas, minha querida louca e deite-as no lixo. Vai matar alguém e hesita. Abra os seus olhos imensos porque a sua mão não treme.
Este filme é ridículo e sentimental.
Por que é que esta louca é tão bela? Vamos ver de novo “A l’ Abri des Lois”, não é verdade, André Breton?
Mas não conhecíamos ainda Charlie Chaplin.

[1] Publicado no nº 15 (15-1-1924) de Films, este texto – do qual damos aqui apenas a primeira parte e que será reproduzido integralmente na compilação (a publicar) dos escritos de Philippe Soupault sobre o cinema – era precedido da nota que se segue:
“O filme americano, desprezado por alguns “intelectuais” foi compreendido pelo povo e pelos poetas. Foi, com efeito, no filme dos United States que o cinema nos apareceu como uma das mais poderosas forças poéticas. A poesia tal como veio ao mundo toca directamente o povo, graças ao cinema. Deixemos o poeta Philippe Soupault agradecer ao filme americano este milagre dos tempos modernos.”

Philippe SOUPAULT (in Films nº 15, 15-1-1925, suplemento do jornal Le Théâtre et Comoedia Illustré; incluindo dois textos publicados anteriormente em Littérat

“HANDS OFF LOVE”
*
Este longo manifesto colectivo foi inspirado pelo processo de escândalo movido contra Chaplin em 1927 pela sua segunda mulher, Lita Grey. As queixas da esposa apareciam com grande destaque e pormenores em todas as revistas e tinham como intenção ver condenar o esposo “abusivo”, no contexto de uma América ainda marcada pelo puritanismo. Tomando a defesa de Charlot, os surrealistas comentaram com indignação os termos em que a queixa era apresentada e viraram violentamente a acusação contra “Madame Chaplin” que maltratam sem piedade. Para o final desta virulenta contra-acusação, o debate alarga-se à obra de Charlot e ganha um pouco de elevação.
Alain e Odette VIRMAUX, in “Les Surrealistes et le Cinéma », Ed. Seghers, Paris, 1976

Pensamos nesse admirável momento em “Charlot et le Comte” (“Charlot Aldrabão”, em português) quando subitamente durante uma festa Charlot vê passar uma mulher muito bela, provocante ao máximo, e subitamente abandona a sua aventura para a seguir, de sala em sala, até ao terraço, até que ela desaparece. Às ordens do amor, ele sempre esteve às ordens do amor, e é isso o que ele proclama muito coerentemente, quer na sua vida, quer em todos os seus filmes. Do amor súbito, que é acima de tudo um enorme apelo irresistível. É imperioso então deixar tudo e, por exemplo, no mínimo, um lar. O mundo com os seus bens legais, a patroa e os miúdos, apoiados pela polícia, a caixa económica, de tudo isso ele foge incessantemente, quer seja o homem rico de Los Angeles como o pobre tipo dos bairros suburbanos, desde “Charlot no Banco” a “A Quimera do Ouro”. A única coisa que ele tem no bolso, moralmente, é precisamente esse dólar de sedução que perde com a maior das facilidades e que em “O Emigrante” vemos constantemente cair das calças rotas para os chão, esse dólar que não passa provavelmente de uma aparência, fácil de torcer entre os dentes, simples moeda falsa, que será recusada, mas que por um instante lhe permite convidar para a sua mesa a mulher qual traço de fogo, a mulher “maravilhosa” cujas feições de traços puros serão para sempre o céu inteiro. É assim que a obra de Charlie Chaplin encontra na sua própria existência a moralidade que transporta permanentemente expressa, mas com todos os desvios que as condições sociais impõem. Quando a senhora Chaplin explica – e ela sabe o género de argumento que invoca – que o seu marido sonhava, como um mau americano, exportar os seus capitais, lembramo-nos sempre do espectáculo trágico dos passageiros de terceira classe etiquetados como animais na ponte do navio que conduz Charlot à América, as brutalidades dos representantes da autoridade, o exame cínico dos emigrantes, as mãos sujas que afloram as mulheres, à entrada desse país da proibição, sob o olhar clássico da Liberdade a iluminar o mundo. Essa liberdade com a sua lanterna que é ao longo de todos os filmes de Charlot a sombra ameaçadora dos polícias, caçadores de pobres, dos polícias que surgem a cada esquina e que suspeitam de imediato do fato miserável do vagabundo, da sua bengala, que Charlie Chaplin num artigo singular, definia como a sua postura, a bengala que cai incessantemente, do chapéu, do bigode, e até mesmo daquele sorriso assustado. Apesar de alguns finais felizes, não nos deixemos enganar, na próxima vez voltaremos a encontrá-lo na miséria, esse terrível pessimista que até aos nossos dias deu força renovada à expressão, quer seja em inglês como em francês, “dog’s life”, uma vida de cão.
“Vida de cão”: actualmente é a do homem cujo génio não conseguirá salvar a situação, do homem a quem todos irão virar as costas, que será arruinado impunemente, a quem será retirado todo e qualquer modo de expressão, que irá ser desmoralizado da forma mais escandalosa para benefício de uma sala pequeno-burguesa cheia de raiva e da maior hipocrisia pública que é possível imaginar. Uma vida de cão. Para a lei o génio não significa nada quando o casamento está ameaçado, o sagrado casamento. O génio, aliás, é impotente perante a lei, sempre o foi. Mas a aventura de Charlot manifesta, para além da curiosidade pública e das trafulhices dos advogados, de todo o vergonhoso lavar de roupa suja que parece sempre mais suja sob essa claridade sinistra, a aventura de Charlot manifesta hoje o seu destino, o destino do génio. Ele, mais do que qualquer obra, marca o seu papel e o seu valor. Subitamente compreendemos o sentido desse misterioso ascendente que um poder de expressão inigualável confere a um homem. Compreendemos subitamente qual é o lugar do génio neste mundo. Ele apodera-se de um homem, faz dele um símbolo inteligível e a presa dos brutos sinistros. O génio serve para explicar ao mundo a verdade moral, que a estupidez universal obscurece e tenta anular. Obrigado, portanto, àquele que no imenso ecrã ocidental, lá longe, no horizonte em que os sóis um a um se põem, faz hoje passar as vossas sombras, grandes realidades do homem, realidades talvez únicas, morais, cujo preço é mais elevado do que o de toda a terra. A terra afunda-se sob os vossos pés. Obrigado ao homem para lá da vítima. Gritamos obrigado e somos vossos servidores.

MAXIME ALEXANDRE, LOUIS ARAGON, ARP, JACQUES BARON, JACQUES-ANDRÉ BOIFFART, ANDRÉ BRETON, JEAN CARRIVE, ROBERT DESNOS, MARCEL DUHAMEL, PAUL ELUARD, MAX ERNST, JEAN GENBACH, CAMILLE GOEMANS, PAUL HOOREMAN, EUGÈNE JOLAS, MICHEL LEIRIS, GEORGES LIMBOUR, GEORGES MALKINE, ANDRÉ MASSON, MAX MORISE, PIERRE NAVILLE, MARCEL NOLL, PAUL NOUGÉ, ELLIOTT PAUL, BENJAMIN PÉRET, JACQUES PRÉVERT, RAYMOND QUENEAU, MAN RAY, GEORGES SADOUL, YVES TANGUY, ROLAND TUAL, PIERRE

* Texto atribuído por Sadoul a Aragon, publicado primeiro em inglês na revista Transition, depois em versão francesa no nº 9-10 de La Révolution Surréaliste (1 Outubro 1927), finalmente incluído no tomo II – Documents Surréalistes – de L’Histoire du Surréalisme de Maurice Nadeau, Seuil, 1948, p. 85-95.
LOUIS ARAGON: “ANICET”* (extracto)

Não existe nada mais fresco no Verão do que as salas de cinema às tardes de semana e os dois amigos tinham-se refugiado no abrigo da sombra do “Electric-Palace”. Sem se preocuparem com os vizinhos, falavam em voz alta e misturavam na conversa apreciações sobre filmes. Assim, vêem passar a vida, empenham nela a sua sensibilidade, desviam-se dela para explorar o espírito e voltam a dirigir os olhos para os espectáculos quotidianos.
“O que faz com que o teatro esteja tão morto para nós, dizia Anicet, é sem dúvida que o seu único assunto é a moral, regra de toda e qualquer acção: a nossa época não pode de forma alguma interessar-se pela moral. No cinema, a velocidade aparece na vida e Pearl White (1) não age para obedecer à sua consciência, mas por desporto, por higiene: age pela acção.
Em conclusão, a heroína desta aventura não tem qualquer necessidade de a prosseguir no meio de tantos perigos. Ela não está bem certa de qual dos partidos é o melhor. Isso não a impede de se lançar destemidamente na confusão. O traidor roubou o diamante pela centésima vez. Pearl arranca-lhe a jóia sob a ameaça de um revólver. Salta para um carro. A viatura estava armadilhada. Atiram Pearl para um subterrâneo. Entretanto, o ladrão roubado tenta entrar em casa dela; surpreendido pelo jornalista, foge pelos telhados; o publicitário persegue-o, perde-o e encontra fortuitamente no bairro chinês o malandro que teve um papel desprezível no decurso dos incidentes anteriores. Continuando, chega ao subterrâneo onde Pearl desespera, ele vai salvá-la; mas, perseguido por sua vez pelo malfeitor que lhe escapou, dá-lhe involuntariamente a pista e, quando, depois de ter feito explodir o edifício com um explosivo recentemente inventado, encontra a bela, desmaiada, ela é amarrada e o diamante é-lhe retirado pelo diligente adversário.
Aqui só houve espaço para gestos, A acção só nos apaixonou à força. Quem é que sonharia discuti-la? Nem dava tempo. É esse o espectáculo adequado a este século.”
Esta retórica devia desagradar profundamente a Baptiste (2). “Basta, disse ele, é sempre a mesma coisa; tu tens consciência de que eu sei o que isto vale. E estou a ver onde é que tu queres chegar. É mesmo espantoso como o vejo bem. Um destes dias ainda me vou zangar. Tu falas, mas nunca ages: na rua lês todos os cartazes, dás gritos diante de todos os reclamos, fazes lirismo, e que lirismo! fácil, convencional; exaltas-te, cansas-te e não passa disso. Já começo a conhecer-te, sei exactamente o que tu pedes ao cinema. Procuras nele os elementos desse lirismo do acaso, o espectáculo de uma acção intensa que tu tens a ilusão de realizar; sob o pretexto de satisfazeres a tua necessidade moderna de agir, sentas-te passivamente perante a mais funesta escola de inactividade que existe no mundo: o ecrã diante do qual todos os dias, por uma quantia ínfima, os jovens do nosso tempo vêm gastar a sua energia a ver os outros viver. Não me falem mais de cinema: nós não temos nada a ir lá buscar, a impureza reina nele e no dia em que as pessoas de boa vontade lhe introduzirem meios artísticos, os raros aspectos atraentes que ele tem para nós irão desaparecer. O mal que esta mecânica te faz, retirando-te o gosto pela vida, não é compensado por coisa alguma. Basta.”

* Anicet ou le Panorama, romance, Gallimard, 1921, reed. « Le Livre de poche », 1969, p. 117-119.
[1] Nota do autor: “Estas linhas são um hino àquela que o grande público chamava, usando um trocadilho involuntário Perle Vite, prestando homenagem à sua energia rápida e à sua rica beleza.”
(2) Num prefácio de 1964, Aragon estabelece que Baptiste representava “evidentemente” André Breton mas fez algum esforço para reconhecer que Anicet o representava a si próprio.

SOBRE STROHEIM
MAXIME ALEXANDRE: MEMÓRIAS DE UM SURREALISTA
*
(extracto)

Um filme de que todos falávamos e que seria vergonhoso não ter visto era “Folies de Femmes” (“Foolish Wives”, 1922), de von Stroheim. A ousadia do tema, o erotismo agressivo da realização, correspondiam de forma surpreendente a alguns dos temas do surrealismo nascente. Von Stroheim, soturno e temível oficial de cavalaria, é amante de uma mulher rica e da sua criada. Um bode negro ronda permanentemente à sua volta. Depois de uma série de aventuras, que corro o risco de confundir com não sei que recordações imaginárias, Von Stroheim viola uma rapariga; durante a cena de amor entre o casal, eles são obrigados a afastar os ataques do bode; a criada, ciumenta, pegou fogo à casa, as chamas cercam já a cama quando o sedutor abandona a sua vítima, jurando-lhe que regressará para a libertar e partir com ela.

* Mémoires d’un Surréaliste, p. 72-73, Editions de la Jeune Parque, 1968

ANTONIN ARTAUD: OS IRMÃOS MARX
*

O primeiro filme dos Irmãos Marx que vimos cá: “Animal Crackers” (“Os Galhofeiros”), pareceu-me, e assim foi encarado por toda a gente, como uma coisa extraordinária, como a libertação através do ecrã de uma magia especial que as relações comuns entre palavras e imagens não revelam habitualmente e se existe um estado caracterizado, um grau poético distinto do espírito que se possa chamar surrealismo, “Animal Crackers” fazia inteiramente parte dele.
Dizer em que consiste essa espécie de magia é difícil, no entanto é qualquer coisa que talvez não seja especificamente cinematográfica, mas que também não pertence ao teatro e da qual só certos poemas surrealistas, se os houvesse, poderiam dar uma ideia. A qualidade poética de um filme como “Animal Crackers” poderia responder à definição do humor, se esta palavra não tivesse perdido já há muito o seu sentido de libertação integral, de rotura de toda a realidade no espírito.
Para compreender a originalidade poderosa, total, definitiva, absoluta (não estou a exagerar, procuro simplesmente definir e, se me estou a deixar levar pelo entusiasmo, paciência) de um filme como “Animal Crackers” e, por momentos (pelo menos na parte final) como “Monkey Business” (“Uma Aventura dos Marx”), seria necessário acrescentar ao humor a noção de qualquer coisa de inquietante e de trágico, de uma fatalidade (nem feliz nem infeliz, mas penosa de formular) que se introduziria por detrás dele como a revelação de uma doença atroz sobre um perfil de uma beleza absoluta.
Encontramos em “Monkey Business” os Irmãos Marx, cada um com o seu tipo próprio, seguros de si e prontos, sente-se isso, a conviver com as circunstâncias, mas se em “Animal Crackers”, e desde o início, cada personagem perdia a característica própria, aqui assiste-se ao longo dos três quartos de hora do filme a brincadeiras de palhaços que se divertem e fazem graças, algumas das quais, aliás, muito bem sucedidas, e é apenas no fim que as coisas se avolumam, que os objectos, os animais, os sons, o patrão e os empregados, o anfitrião e os convidados, tudo se acirra, precipita-se e entra em revolta, sob os comentários simultaneamente extasiados e lúcidos de um dos irmãos Marx, estimulado pelo espírito que conseguiu finalmente desencadear e do qual ele parece o comentário estupefacto e passageiro. Não existe nada simultaneamente alucinante e terrível como essa espécie de caça ao homem, como essa batalha de rivais, como essa perseguição nas trevas de um estábulo de bois, de um celeiro de onde pendem teias de aranha por toda a parte, enquanto homens, mulheres e animais desfazem a sua roda e se encontram no meio de um amontoado de objectos heteróclitos cujo movimento ou cujo ruído têm a sua utilidade específica.
Quando em “Animal Crackers” uma mulher se vira de pernas para o ar, em cima de um divã e mostra, por um instante, tudo aquilo que quereríamos ver, quando um homem se lança bruscamente sobre uma mulher, num salão, faz com ela alguns passos de dança e a agarra em seguida pelas nádegas, acompanhando o ritmo, isso é o exercício de uma espécie de liberdade intelectual em que o inconsciente de cada uma das personagens, constringido pelas convenções e os costumes, se vinga e o nosso o acompanha, mas quando em “Monkey Business” um homem perseguido se lança sobre uma bela mulher que encontra e dança com ela poeticamente, numa espécie de procura do charme e da graça das atitudes, aqui a reivindicação espiritual manifesta-se duplamente e mostra tudo o que há de poético e talvez de revolucionário nas brincadeiras dos Marx Brothers.
Mas que a música ao som da qual dança o par do homem perseguido e da bela mulher seja uma música de nostalgia e de evasão, uma música de libertação, indica bastante o lado perigoso de todas estas brincadeiras humorísticas e que o espírito poético, quando se exerce, tende sempre a uma espécie de anarquia tempestuosa, a uma desintegração do real pela poesia.
Se os americanos, ao espírito dos quais pertence este género de filme, só querem entender estes filmes de um ponto de vista humorístico, e que em matéria de humor não ultrapassem nunca as margens fáceis e cómicas do significado desta palavra, problema deles, mas isso não nos impedirá de considerar o fim de “Monkey Business” um hino à anarquia e à revolta integral, esse fim que coloca ao mesmo nível intelectual o balir de um vitelo e o grito de uma mulher com medo e que lhe atribui a mesma qualidade de dor lúcida, esse fim em que, nas trevas de um celeiro sujo, dois criados raptores trituram a seu belo prazer os ombros nus da filha do patrão, e tratam de igual para igual o patrão desprezado, tudo isso no meio da embriaguês, também ela intelectual, das piruetas dos Marx Brothers. E o triunfo de tudo isso está na espécie de exaltação simultaneamente visual e sonora que todos estes acontecimentos ganham nas trevas, no grau de vibração que atingem e na forma de inquietação poderosa que a reunião de tudo isso acaba por projectar no espírito
.
* Nota publicada em La Nouvelle Revue française (nº 220, 1 de Janeiro 1932) e recolhida depois por Artaud em Le Théâtre et son double (Gallimard, 1938). O texto aqui reproduzido segundo o tomo IV das Oeuvres complètes d’Artaud (Gallimard, 1964, p. 165-168); ver também a edição de bolso do Théâtre et son double, coll. “Idées”, Gallimard 1972, p. 209-213.

ROBERT DESNOS: CINEMA DE VANGUARDA
*

Um modo erróneo de pensar devido à influência persistente de Oscar Wilde e dos estetas de 1890, influência à qual devemos, entre outras, as manifestações de M. Jean Cocteau, criou no cinema uma confusão nefasta.
Um respeito exagerado pela arte, uma mística de expressão conduziram um grupo de produtores, actores e espectadores à criação do cinema dito de vanguarda, notável pela rapidez com a qual as suas produções passam de moda, a sua ausência de emoção humana e o perigo que faz correr a todo o cinema.
Gostaria que me compreendessem. Quando René Clair e Picabia realizaram “Entr’ Acte”, Man Ray “L’Étoile de Mer”(1) e Buñuel o seu admirável “Chien Andalou”, não se tratava de criar uma obra de arte ou uma estética nova mas sim de obedecer a movimentos profundos, originais e, consequentemente, que necessitavam de uma forma nova.
Não, o que eu ataco aqui são os filmes do género “Inhumaine”, “24 heures en 30 minutes”, “Le Montreur d’Ombrs” (2), etc.
Não insistirei, ou apenas muito pouco, no ridículo dos nossos actores, sendo a comparação entre fotografias de Bancroft e de Jacques Catelain suficientes para mostrar o grotesco e a vaidade deste último que podemos considerar o protótipo do actor de vanguarda, tal como M. Marcel l’Herbier é o do realizador.
A utilização de processos técnicos que a acção não justifica, uma actuação convencional, a pretensão de exprimir os movimentos arbitrários e complicados da alma, são as primeiras características desse cinema que designarei com prazer de cinema de cabelos na sopa.
Tais obras tiveram os seus apologistas e basta, para nos convencermos do grau inacreditável de erro e de artifício a que os críticos podem chegar, ler o artigo dedicado por M. Mousinac ao filme do seu cunhado: “24 heures en 30 minutes”.
O non-sens, a confusão, a incoerência, a incongruência, a barafunda, encontram nele um magnífico exegeta que, como é natural, conclui recomendando ao seu público operário, o qual terá aliás demasiado bom gosto para o seguir, uma lamentável imitação dos filmes originais de Sauvage e Cavalcanti em detrimento de uma obra indiscutivelmente humana e sã e poética: refiro-me a “Un Chien Andalou”.
E não será o menos divertido de toda esta confusão reunir aqui numa comunhão de ideias o eminente crítico de “L’Humanité” e o penetrante analista protestante M. Jean Prévost da “La Nouvelle Revue Française” (3).
Na realidade, a vanguarda, no cinema, em literatura, no teatro, é uma ficção. Quem quer que pretenda ser incluído no número desses revolucionários timoratos pratica de facto a política de “o hábito faz o monge”.
Belas máscaras, não nos conseguiríeis iludir.
Bastaria, para vos convencer do truque de prestidigitação, projectar um dos vossos filmes de mangas largas antes ou depois da admirável “Symphonie Nuptiale” de Stroheim em quem deveremos saudar um génio tão autêntico como Charlot e tão importante do ponto de vista da influência. Eis o filme humano em toda a sua comovente e trágica beleza. Essa história, Stroheim, foi por vós vivida. Conheci as personagens de “Folie de Femmes”, de “Rapaces”, de “Chevaux de bois”. Quão grande dor trazeis convosco há tanto tempo, dor tão grande que não vos cansais de reviver incessantemente as suas circunstâncias e de representar repetidamente um papel assumido por vós outrora sem qualquer dúvida?
Mas aí encontramos a nossa vanguarda.
Embora ela tenha “descoberto” Charlot quatro ou cinco anos depois do homem do povo, a nossa vanguarda fez dele coisa sua. Há Charlot e é tudo.
Pois bem, não é assim. Amo e admiro Charlot há doze anos mas confesso que Stroheim me comove de forma mais directa, de uma forma que convém melhor ao meu temperamento.
E é precisamente porque Stroheim tem a coragem de nos mostrar o amor tal como ele é que ele é hoje o mais revolucionário dos realizadores e o mais humano.
Não é que aquelas famosas flores de macieira, abominadas por toda a nata dos artistas e dos espíritos esclarecidos, não sejam precisamente de natureza a nos comover o mais profunda e legitimamente; qual é o homem verdadeiramente apaixonado não esteve já sob o efeito “flor de macieira”, “bilhete-postal” e “refrão de romança”?
Apenas a fraqueza é revolucionária. A característica de qualquer reacção é a mentira e a falta de sinceridade. E é essa franqueza que nos permite hoje colocar no mesmo plano os verdadeiros filmes revolucionários: o “Potemkine”, “La Rué vers l’or”, “La Symphonie Nuptiale” e “Un Chien Andalou”, enquanto confundimos nas mesmas trevas “La Chute de la Maison Husher” onde se revela a fala de imaginação, ou antes, a imaginação paralisada de Epstein, “L’Inhumaine”, “Paname n’est pas Paris”. Com efeito, não existe vanguarda a não ser o cinema francês no seu conjunto, quer se trate de cine-romances ou das produções Nalpas-Gance (pobre Napoleão), Baroncelli e tutti quanti. A questão é saber, vanguarda de quê?
Ser-me-á permitido abster-me de escrever a palavra enérgica e definitiva que a classificaria sem dúvidas.
Bastaria, aliás, para apreciar estes espíritos avançados, ver qual foi a sua atitude quando apareceu o cinema sonoro. (O filme falado é uma outra história e conviria, antes de o discutir, saber o que é. Peço desculpa de o ignorar, mas nunca vi verdadeiros filmes falados.)
Foi apenas um grito de horror o que saiu daquelas bocas delicadas.
Condenaram sem apelo uma invenção da mesma forma que os artistas do início do século condenaram o cinema no seu conjunto. Os mesmos argumentos foram utilizados. Aproveitaram-se da mediocridade das produções presentes para condenar as do futuro…
Contudo, na sombra onde soam os passos reconhecíveis de Charlot e os beijos desesperados de Stroheim, na sombra propícia das salas de projecção, longe de toda a teoria artística, dois adolescentes, o amigo e a amiga, deleitam-se nos braços um do outro enquanto no ecrã Betty Compson faz sinal de que tem qualquer coisa para dizer. E há-de dizê-lo.

* Robert Desnos, Documents, 1929, nº7. Texto incluído em Cinema, Gallimard, 1966, p. 189-192 (apresentação de André Tchernia)

[1] (Nota de Desnos). Aqui o autor destas linhas assume um arzinho modesto.

2(Nota de Desnos). Não é de ânimo leve que este filme alemão é aqui citado, mas a título de exemplo da lamentável decadência do cinema de além-Reno.

3 (Nota do apresentador da edição Gallimard). Ver L’Humanité, 6 de Outubro 1929, Sur trois films dits d’avant-garde. Moussinac faz numerosas reservas acerca de Les Mystères du Château de Dé (Man Ray) e Un Chien Andalou, pelo contrário, tece os maiores elogios a 24 heures en 30 minutes : « Pode dizer-se que é primeiro ensaio científico que é realizado em França, à parte certos fragmentos de obras de Gance … Não há aqui lugar para o sonho. A preocupação da “casca” varre a poesia…” Na N.R.F. XXXIII, 1929, Jean Prévost, ao falar dos filmes de Clair e de Buñuel, escreve “quando todas estas extravagâncias cansarem, estes puros artistas render-se-ão à verdade, que só ela é inesgotável.”
MANIFESTO SURREALISTA: L’ÂGE D’OR*

A minha ideia geral ao escrever com Buñuel o argumento de “L’Age d’Or” foi apresentar a linha direita e pura da “conduta” de um ser que persegue o amor através dos ignóbeis ideais humanitários, patrióticos e de outros mecanismos miseráveis da realidade.
SALVADOR DALI

O ARGUMENTO

Escorpiões vivem em rochas. Empoleirado em cima de uma dessas rochas, um bandido avista um grupo de arcebispos que cantam sentados numa paisagem mineral. O bandido corre a anunciar aos seus amigos a presença, muito perto deles, de maiorquinos (1) (são arcebispos). Chegado à sua cabana, encontra os amigos num estranho estado de fraqueza e de depressão. Eles pegam nas armas e saem todos, à excepção do mais jovem que nem sequer consegue levantar-se. Começam a andar por entre as rochas; mas, uns após os outros, não aguentando mais, acabam por cair. Então o chefe dos bandidos sucumbe sem esperança. Do local onde se encontra, ouve o barulho do mar e vê os maiorquinos que, agora, estão já no estado de esqueletos espalhados entre as pedras.
Uma enorme caravana marítima dá à costa naquele lugar abrupto e desolado. A caravana compõe-se de padres, militares, freiras, ministros e diversas pessoas à civil. Dirigem-se todos para o local onde repousam os restos dos maiorquinos. Imitando as autoridades que conduzem o cortejo, a multidão descobre as cabeças.
Trata-se de fundar a Roma imperial. A primeira pedra é colocada, quando gritos agudos desviam a atenção geral. Na lama, a dois passos deles, um homem e uma mulher lutam amorosamente. Separam-nos. Batem no homem e os polícias levam-no.
Este homem e esta mulher serão os protagonistas do filme. O homem, graças a um documento que revela a sua elevada posição e a importante missão humanitária e patriótica que o governo lhe confiou, é rapidamente posto em liberdade. A partir deste momento, toda a sua actividade se volta para o Amor. No decurso de uma cena de amor não realizado presidida pela violência de actos falhados, o protagonista é chamado ao telefone pela alta personagem que o encarregou da responsabilidade da missão humanitária em questão. Este ministro acusa-o. Porque ele abandonou a sua tarefa, milhares de idosos e de crianças inocentes morreram. O protagonista do filme recebe esta acusação com injúrias e, sem querer ouvir mais nada, volta para o lado da mulher amada no momento em que um acaso muito inexplicável consegue, ainda mais definitivamente, separá-la dele. A seguir vemo-lo deitar pela janela um pinheiro em chamas, um enorme instrumento agrícola, um arcebispo, uma girafa, plumas. Tudo isso no instante preciso em que os sobreviventes do castelo de Selligny passam a ponte levadiça coberta de neve. O conde de Blangis é evidentemente Jesus Cristo. Este último episódio é acompanhado por um passodoble. (2)

L’ÂGE D’OR
Na quarta-feira 12 de Novembro de 1930 e nos dias seguintes tomarão quotidianamente lugar numa sala de espectáculos, várias centenas de pessoas para ali conduzidas por aspirações muito diversas, fortemente contraditórias, indo, como numa escala mais vasta, das melhores às piores, pessoas essas que em geral não se conhecem e mesmo, do ponto de vista social, tendo o menos possível a ver umas com as outras, mas ajuramentadas quer queiram quer não pela virtude da obscuridade e do alinhamento insensível e da hora que é a mesma para todos, para fazer prevalecer ou abortar com “L’Age d’Or” de Buñuel, um dos programas máximos de reivindicações jamais proposto à consciência humana até hoje, adequado talvez, a mais do que abandonar-se à delícia de ver finalmente transgredidas até ao grau supremo as leis de desencorajamento que passavam por tornar inofensiva a obra de arte sob a qual existe um Cristo e perante a qual, com a ajuda da hipocrisia nos esforçamos por não reconhecer, sob a designação de beleza, mais do que uma mordaça, adequado mesmo certamente medir com algum rigor a envergadura dessa ave de rapina hoje totalmente inesperada no céu que baixa, no céu ocidental que baixa: “L’Age d’Or”.

O INSTINTO SEXUAL E O INSTINTO DA MORTE

Seria talvez pedir demasiado pouco aos artistas de hoje que se limitem à constatação, aliás genial, de que a energia sublimada que germina neles continuará a entregá-los, de mãos e pés atados, à ordem das coisas existentes e não fará, através deles, outras vítimas a não ser eles próprios. É, pensamos nós, seu dever mais elementar, submeter a actividade que resulta para eles dessa sublimação, de origem misteriosa, a uma crítica aguda e de não recuar perante qualquer sofrimento aparente, já que se trata acima de tudo de desapertar a mordaça de que falávamos. Entregar-se com todo o cinismo que esse empreendimento comporta à desistência em si e à afirmação de todas as tendências ocultas, das quais a resultante artística não passa de um aspecto bastante frívolo, deve não apenas ser-lhes permitido, mas mesmo exigido. Não pode partir senão deles, para além dessa sublimação da qual eles são o objecto e que não poderia ser considerada sem misticismo como uma finalidade natural, propor ao julgamento científico um outro termo, uma vez tendo-se eles apercebido dessa sublimação. Esperamos hoje do artista que ele saiba a que maquinação fundamental deve o facto de ser artista e não se lhe pode conceder que assuma a sua pretensão a sê-lo a não ser quando estamos seguros de que ele tomou plena consciência dessa maquinação.
Ora o exame desinteressado das condições nas quais se resolve – tende a resolver-se – o problema, explica-nos que o artista Buñuel por exemplo, não será mais do que o lugar próximo de uma série de combates que travam na distância dois instintos que contudo se encontram associados em qualquer homem: o instinto sexual e o instinto da morte.
Considerando que a atitude hostil universalmente adoptada que o segundo destes instintos arrasta não difere de homem para homem a não ser na sua aplicação e que por outro lado as razões puramente económicas se opõem na sociedade burguesa actual a que esta atitude beneficie de outras satisfações para além das muito parciais, sendo estas mesmas razões por si só uma fonte inesgotável de conflitos derivados dos que poderiam ser, e que seria então curioso examinar, sabe-se que a atitude amorosa com todo o egoísmo que supõe, e as possibilidades de realização muito mais apreciáveis de que ela dispõe, é aquela que, das duas, consegue suportar melhor a luz do espírito. Daí o gosto miserável do refúgio que se coloca na arte desde há séculos, donde a muito grande tolerância que se utiliza perante tudo o que, em troca de abundantes choros e ranger de dentes, ajuda mesmo assim a colocar essa atitude amorosa acima de tudo.
Não deixa de ser menos verdade, dialecticamente, que uma destas atitudes não pode valer humanamente a não ser em função da outra, que estes dois instintos de conservação, já o foi dito com toda a propriedade, que tendem a restabelecer um estado que foi perturbado pelo aparecimento da vida, se equilibram em todos os homens de uma forma perfeita e que é apenas à cobardia social que o anti-Eros deve, à custa de Eros, a sua aparição. Não deixa igualmente de ser verdade que é pelo grau de violência que vemos animar-se a paixão amorosa num ser que podemos avaliar a sua capacidade de recusa, podemos, descontando a inibição passageira em que a sua educação o mantém ou não, conferir-lhe mais do que um papel sintomático, sob o ponto de vista revolucionário.
Que uma só vez, e é o caso, essa paixão amorosa se mostre suficientemente esclarecida sobre a sua própria determinação, que uma só vez ela se encha dos espinhos descontentes do sangue daquilo que se quer amar e daquilo que por vezes amamos, que uma só vez se lhe aplique o frenesim tão reclamado, fora do qual, nós, surrealistas, nos recusamos a considerar válida qualquer expressão de arte, e então conheceremos o limite novo e dramático do compromisso pelo qual todos os homens passam e pelo qual, ao aceitarmos escrever ou pintar, somos os primeiros e os últimos a ter consentido passar, sem informação mais ampla, – sendo “L’Age d’Or” essa informação mais ampla.

É A MITOLOGIA QUE MUDA

No momento, estamos certos, mais propício à investigação psicanalítica, tendente a determinar a origem e a formação dos mitos morais, cremos ser possível, por simples indução e à margem de qualquer rigor científico, concluir a possibilidade e existência de um critério que emanaria de forma precisa de tudo o que se pode sintetizar nas aspirações do pensamento surrealista em geral e que resultaria, do ponto de vista biológico, na atitude contrária à que permite admitir a existência de diversos mitos morais como sobrevivência de tabus primitivos. No lado diametralmente oposto a essa sobrevivência, cremos nós (por paradoxal que possa parecer) que é no domínio daquilo que se costuma reduzir às limitações (!) do congénito, que seria admissível uma hipótese depreciativa destes mitos, segundo a qual as adivinhações e mistificações de certas representações fetichistas com significado moral (tais como as relacionadas com a maternidade, a velhice, etc.) seriam um produto que, pela sua relação com o mundo afectivo e simultaneamente pelo seu mecanismo de objectivação e de projecção para o exterior, poderia ser considerado como um caso, seguramente muito complicado, de transfert colectivo no qual o papel desmoralizador seria representado por um poderoso e profundo sentimento de ambivalência.
As possibilidades psicológicas individuais de obliteração por vezes total de um vasto sistema mítico coexistem com a não menos frequente possibilidade muito divulgada de encontrar em tempos ulteriores, por um processo de regressão, mitos arcaicos já existentes. Isso significa, por um lado a afirmação de certas constantes simbólicas do pensamento inconsciente, por outro lado o facto de que este pensamento é independente de todo e qualquer sistema mítico. Tudo se resume portanto a uma questão de linguagem; pela linguagem inconsciente podemos reencontrar um mito, mas temos perfeita consciência de que as mitologias mudam e que uma nova sofreguidão psicológica com tendência paranóica ultrapassa completamente os nossos sentimentos quantas vezes miseráveis.
Não nos podemos fiar na ilusão que pode resultar da ausência de comparação, ilusão semelhante à da marcha do comboio parado quando um outro comboio passa diante da janela do compartimento e, no caso ético, semelhante à da translação dos factos para o mal: tudo se passa como se, contrariamente à realidade, o que mexe, o que se altera não fossem precisamente os acontecimentos, mas, o que é mais grave, a mitologia.
Nas próximas mitologias morais terão lugar de uma forma habitual as reproduções escultóricas de diversas alegorias edificantes entre as quais serão assinaladas como as mais extraordinárias um casal de cegos devorando-se mutuamente e a de um adolescente com olhar nostálgico “escarrando por puro prazer no retrato da mãe”.
Conduzindo a mais encarniçada das lutas contra todos os artifícios, quer sejam subtis ou grosseiros, a violência, neste filme, despe a solidão de todos os seus adereços. Na solidão, cada objecto, cada ser, cada hábito, cada convenção, cada imagem também, premedita regressar à sua realidade sem futuro, não mais conter um segredo, ser definido tranquilamente, inutilmente pela atmosfera que criou. Mas eis que o espírito que não aceita fica só e quer vingar-se de tudo o que assim se apodera do mundo que lhe é imposto.
Nas suas mãos areia, fogo, água, plumas, nas suas mãos o árido usufruto da privação, nos seus olhos a cólera, nas suas mãos a violência. Depois de ter sido, durante tanto tempo, vítima de todas as convulsões, o homem responde à calma que o vai cobrir de cinzas.
Quebra, impõe, aterroriza, pilha. As portas do amor e do ódio estão abertas e dão passagem à violência. Desumana, ela põe o homem em pé e não admite a esse resíduo sobre a terra a possibilidade de um fim.
O homem sai do seu abrigo e, frente à vã disposição dos encantos e desencantos, embriaga-se com a força do seu delírio. Que importa a fraqueza dos seus braços se a cabeça, essa, está submetida à fúria que a devasta.
Não estamos longe do dia em que nos aperceberemos que apesar de todas as feridas e de todas as lacerações que nos mordem como ácido e na base dessa actividade libertadora ou tenebrosa que é o ensaio de uma vida mais limpa no próprio íntimo do mecanismo em que a ignomínia industrializa a cidade,

O AMOR
está só, fora dos limites imagináveis e domina da profundidade do vento, do poço de diamante, as construções do espírito e a lógica da carne.
O problema da falência dos sentimentos, intimamente ligado ao do capitalismo, não está ainda resolvido. Encontramos em todos os domínios uma busca de novas convenções que ajudarão a viver até ao momento de uma libertação ainda ilusória. A psicanálise criou a maioria dos preconceitos neste campo, porque o problema central do amor ficou de fora das manifestações que o acompanham. É mérito de “L’Age d’Or” ter mostrado o irreal e a insuficiência de um tal conceito. Buñuel formulou uma hipótese sobre a revolução e o amor que toca no mais fundo da natureza humana através do mais patético dos debates e colocou diagonalmente uma profusão de notáveis durezas, esse momento único em que, de lábios cerrados, seguimos a voz mais longínqua, mais presente, mais lenta, mais urgente, até ao bramido tão forte que mal conseguimos ouvir:
Amor…Amor… Amor… Amor…
É inútil acrescentar que um dos pontos culminantes da pureza deste filme nos parece cristalizado na visão da heroína nos gabinetes, em que o poder do espírito acaba por sublimar uma situação geralmente barroca num elemento poético da mais pura nobreza e solidão.

SITUAÇÃO NO TEMPO

Já não serve de nada, actualmente, uma coisa muito pura e muito inatacável ser a expressão daquilo que um homem traz dentro de si de mais puro e inatacável porque, faça ele o que fizer, façamos nós o que fizermos, para subtrair a sua obra à injúria, ao equívoco e com isto queremos apenas designar o pior de todos eles, que reside no desvio desse pensamento em favor de um outro que não tenha com ele nada em comum – faça ele o que fizer, dizíamos, é em vão que se esforça. Nos tempos que correm, tudo parece utilizável indiferentemente para fins que já denunciámos e reprovámos sobejamente para que possamos passar à frente sempre que confrontados com eles e, como exemplo, quando lemos em “Les Annales” uma declaração em que o último dos palhaços se entregava a comentários delirantes sobre “Un Chien Andalou” e se baseava na autoridade da sua admiração para descobrir uma identidade entre a inspiração deste filme e a sua (dele) poesia. A confusão, no entanto, não é de forma alguma possível. Mas seja qual for a cerca de que rodeemos um domínio, aparentemente já de si bem defendido, vemos imediatamente a porcaria a cobri-lo. Apesar de neste momento bastar que um livro, um quadro, um filme contenham em si os seus próprios meios de agressão para desencorajar a vigarice, continuamos apesar de tudo a pensar que a provocação é uma precaução como qualquer outra e, neste campo, nada falta à “L’Age d’Or”para desencorajar quem quer que nela espere encontrar comodamente lugar para pastar. Se o espírito de escândalo que Buñuel ali manifestou, não por um capricho deliberado, mas por razões que, por um lado são pessoais, por outro implicam a vontade de afastar apara sempre os curiosos, os amadores, os brincalhões, os exegetas que nele procurarão uma ocasião para exercer a sua maior ou menor faculdade de discorrer, se um tal espírito conseguiu, desta vez, o objectivo em que se obstina, poderemos então libertá-lo de qualquer outra ambição. É tarefa dos profissionais da crítica pedir mais e, a propósito deste filme, formularem as suas interrogações quanto ao argumento, a técnica, a intervenção da palavra. Não esperem de nós que lhes forneçamos os argumentos destinados a alimentar o seu debate sobre a oportunidade do silêncio ou do ruído e que mantenhamos uma discussão tão vã, tão ultrapassada como a do verso clássico ou o verso livre. Seremos sempre demasiado sensíveis ao que, numa obra ou num ser, deixa a desejar, para nos interessar muito com a perfeição, com uma ideia de perfeição, venha ela donde vier, seja qual for o progresso de onde pareça proceder. E, na realidade, não foi desse problema que Buñuel se ocupou e será que se pode falar de problema relativamente a um filme onde nada do que nos preocupa é escamoteado nem deixado em suspenso? Da interminável bobina de película até agora proposta aos nossos olhares e hoje diluída, da qual alguns fragmentos não passaram de um divertimento numa noite em que é preciso matar o tempo; outros o motivo de uma breve e incompreensível exaltação, que retemos nós a não ser a voz do arbitrário descoberta nalgumas comédias de Mack Sennett; a do desafio em “Entr’acte”; a de um amor selvagem em “Ombres blanches”; a de uma esperança e uma desesperança igualmente ilimitadas nos filmes de Chaplin? Para além disso, nada, exceptuando o irredutível apelo à revolução do “Couraçado Potemkine”. Nada para além de “Chien Andalou” e de “L’Age d’Or” que se situam para além de tudo o que existe. Honra, portanto, seja feita a esse homem que, de uma ponta à outra do filme, atravessa-o levando nas roupas os vestígios de poeira e de caliça, indiferente a tudo o que não seja exclusivamente o pensamento do amor que o ocupa e o conduz, e em redor do qual se organiza e gira o mundo, esse mundo com o qual ele não encontra harmonia e ao qual, uma vez mais, nós só pertencemos na medida em que nos erguemos contra ele.

ASPECTO SOCIAL – ELEMENTOS SUBVERSIVOS

Será necessário procurar um cataclismo já longínquo para descobrir algo a que se possam comparar os tempos modernos. Será sem dúvida necessário reportarmo-nos à derrocada do mundo antigo. A curiosidade que nos impele para essas épocas de grande perturbação bastante semelhantes, feitas as devidas reservas, àquela em que vivemos, gostaria de encontrar algo mais desses tempos do que a história. Infelizmente o cristianismo está completamente cheio do seu céu onde não há nada que não tenhamos já visto no tecto do ministério do interior ou nas rochas à beira mar. É por isso que os traços autênticos deixados na retina humana pela agulha de um grande sismógrafo mental se revestirão sempre, a menos que desapareçam com tudo o mais na derrogação da sociedade capitalista, de uma importância excepcional, para aqueles a quem interessa acima de tudo determinar o ponto crítico em que os “simulacros” tomam o lugar da realidade, dependendo da vontade dos homens que o sol se ponha definitivamente. Projectada no momento em que os bancos caem, em que as revoltas explodem, em que os canhões começam a sair do arsenal, “L’Age d’Or” deveria ser visto por todos aqueles a quem não inquietam ainda as notícias que a censura deixa imprimir nos jornais. É um complemento moral indispensável aos alarmes da Bolsa, cujo efeito será muito directo, precisamente por causa do seu carácter surrealista. Não existe, com efeito, efabulação na realidade. As primeiras pedras são colocadas, as convenções ganham figura de dogma, os polícias batem como todos os dias e, também como todos os dias, produzem-se diferentes acidentes no próprio seio da sociedade burguesa, acolhidos com total indiferença. Estes acidentes a propósito dos quais se poderá notar que surgem no filme de Buñuel filosoficamente puros, enfraquecem a capacidade de resistência de uma sociedade em putrefacção, que se esforça por sobreviver utilizando os padres e os polícias como únicos materiais de apoio. O pessimismo final, saído do próprio seio da classe dirigente pela desintegração do seu optimismo, torna-se por sua vez uma poderosa força de decomposição dessa classe, ganha o valor de uma negação, afirmando-se imediatamente na acção anti-religiosa, portanto revolucionária já que a luta contra a religião é também a luta contra o mundo. A passagem do pessimismo do estado à acção é determinada pelo Amor, princípio do mal na demonologia burguesa, que pede que tudo lhe seja sacrificado: situação, família, honra, mas cuja ausência na organização social introduz o sentimento de revolta. Um processo semelhante pode ser observado na vida e obra do marquês de Sade, contemporâneo de “L’Age d’Or” e da monarquia absoluta, interrompidas pela implacável repressão física e moral da burguesia triunfante. Não é portanto por acaso que o filme sacrílego de Buñuel é um eco das blasfémias gritadas pelo divino marquês pelas grades da prisão. Fica evidentemente por mostrar o futuro deste pessimismo na luta e no triunfo do proletariado que é a decomposição da sociedade enquanto classe particular. Na época da “prosperidade” o valor da utilização social de “L’Age d’Or” deve estabelecer-se pela satisfação da necessidade de destruição dos oprimidos e talvez também pela lisonja das tendências masoquistas dos opressores. Apesar de todas as ameaças de asfixia, este filme terá uma grande utilidade, pensamos nós, para trespassar céus sempre menos belos do que aqueles que ele nos mostra num espelho.

MAXIME ALEXANDRE, ARAGON, ANDRÉ BRETON, RENÉ CHAR, RENÉ CREVEL, SALVADOR DALI, PAUL ELUARD, BENJAMIN PÉRET, GEORGES SADOUL, ANDRÉ THIRION, TRISTAN TZARA, PIERRE UNIK, ALBERT VALENTIN.

* “Documentos Surrealistas”, tomo 2 de L’Histoire du Surréalisme, de Maurice Nadeau, ed. du Seuil, Paris, 1948, p. 167-178. Texto reproduzido igualmente no nº 27-28 de L’Avant-scène Cinéma, no livro de G. Rondolino.
[1] Maiorquinos: habitantes da ilha de Maiorca (Espanha).
2 Vê-se ainda no filme, entre outros pormenores, um cego maltratado, um cão esmagado, um filho quase morto gratuitamente pelo pai, uma velha senhora esbofeteada, etc.
RENÉ CLAIR: CINEMA E SURREALISMO
*

As relações entre o surrealismo e o cinema foram bem estudadas por M. J. Goudal em “La Revue Hebdomadaire”. Seria demasiado longo discutir aqui as suas ideias. No entanto um ponto merece um breve comentário. M. J. Goudal escreve “que a aplicação das ideias surrealistas ao cinema escapa às objecções que se podem dirigir ao surrealismo literário”. Seja. Mas outras objecções se apresentam. Se o surrealismo tem a sua técnica própria, o cinema também tem a sua. O que me interessa no surrealismo, é o que ele me revela de puro, de extra-artístico. Para traduzir em imagens a mais pura concepção surrealista, será necessário submetê-la à técnica cinematográfica, o que corre o risco de lhe fazer perder a esse “automatismo psíquico puro” uma grande parte da sua pureza.
É essa a razão por que não posso acreditar que o cinema seja o melhor meio de expressão surrealista. Mas o cinema e o surrealismo não estão de forma alguma divorciados. Aqui estou de acordo com M. Goudal que sublinha o carácter de alucinação do cinema e a inutilidade de qualquer comentário lógico perante os acontecimentos que o ecrã apresenta. Se o cinema não pode ser um meio perfeito de expressão para o surrealismo, continua contudo a ser, para o espírito do espectador, um campo de actividade surrealista incomparável. O notável “Sherlock Holmes júnior” de Buster Keaton fez a esta característica do cinema uma crítica dramática comparável à que foi para o teatro “Seis Personagens em Busca de um Autor” de Pirandello.

* In Les Cahiers du móis, nº 16-17, “Cinéma », ed. Emile-Paul Frères, 1925, p. 90-91.

MARC SORIANO: O SURREALISMO NO CINEMA
*

O surrealismo foi definido pelos seus fundadores como a recusa da lógica, a exploração das regiões da nossa consciência que a razão não organiza. O seu domínio é o maravilhoso, o sonho, a loucura, a alucinação. É fácil de adivinhar as possibilidades que os poetas de 1924 entreviam no cinema, arte ainda nova mas cujo estranho poder eles pressentiam. Um dos primeiros ensaios do género foi o “Ballet Mécanique” do pintor Fernand Léger. Nele, uma mulher-a-dias, no meio de diversos utensílios de metal, sobe quinze vezes consecutivas uma grande escada, sugerindo, aliás com grande intensidade, um trabalho de Sísifo, um destino implacável e incessantemente recomeçado.
A este seguiram-se muitos outros jogos do mesmo género. Os mais conhecidos são “La Coquille et le Clegyman” segundo argumento surrealista de Antonin Artaud – “L’Étoile de Mer” de Man Ray e o “Chien Andalou” de Luís Buñuel (de quem a censura iria proibir a banda seguinte: “L’Age d’ Or”). São, na sua maioria, sucessões de fotografias agressivas ou surpreendentes, no geral muito belas, mas a obsessão sexual que as inspira não é suficiente para lhes impor um ritmo satisfatório. Os curiosos admirarão em “Chien Andalou” uma mitologia de um gosto perfeito: a mão infestada de formigas vermelhas, o olho cortado à navalha, o vitelo ensanguentado em cima do piano. Mais tarde, Jean Cocteau reencontra essa inspiração em “Le Sang d’un Poète”, espécie de sonho visual onde se atravessam espelhos, onde existem negros nus que têm nas costas pequenas asas, crianças que atiram bolas de neve e sangram pela boca, jogos de cartas marcadas e onde as personagens principais se deslocam exclusivamente sobre as canalizações do aquecimento central e sobre tubos de chaminés. O conjunto, muito lento, não é entediante para um psicanalista.
Actualmente o “filme de arte” surrealista refugiou-se na América. Os meios bem informados anunciam que Fernand Léger, Man Ray, Calder, Duchamp, Ernst reunidos em redor de Hans Richter realizam “La Grande Julie” – história de um manequim de cera que se reanima sob o efeito dos beijos, mas que acaba por derreter. Belo tema, talvez um pouco vasto.
A qualidade dos filmes surrealistas está fora de dúvida: pode-se simplesmente notar que as palavras “cinema” e “surrealismo” são contraditórias. A câmara tem as suas leis; mesmo as imagens mais loucas têm necessidade de estar ligadas entre si pela analogia ou pelo ritmo. Um filme surrealista não nos consegue tocar se não fornecer uma plataforma razoável a partir da qual possamos sonhar. Eis porque, provavelmente, o público recusa o surrealismo no cinema.
* In (Cinema), Formes et Couleurs, Lausanne, 1946, nº 6.
ADO KYROU: O SURREALISMO NO CINEMA*

Não é necessário procurar muito para encontrar nas salas de cinema de bairro filmes a maior parte das vezes involuntariamente sublimes, filmes desprezados pela crítica, rotulados de cretinismo ou de infantilismo pelos velhos defensores do racional. Digo “a maior parte das vezes” porque por vezes realizadores conscientes e muito cultos mergulham numa beleza poderosa e oferecem-nos melodramas sublimes onde o barroco mais desenfreado parece idiota para aqueles que não são capazes de ler nas entre-imagens. Eis alguns exemplos: “Pete kelly’s blues” (1955, de J. Webb), alguns melodramas de Douglas Sirk (“Written on the Wind”, 1956, “Imitation of Life”, 1959), o admirável “Some came Running” (1959) de Minnelli, o sublime “Jeanne Eagels” (1959), do desconhecido George Sidney, etc., etc.
E a maior parte das vezes são filmes involuntariamente dadaístas ou surrealistas, melodramas apanhados de surpresa, gestos históricos com gags involuntários, filmes que quebram as amarras e vivem uma vida própria, cheia de liberdade. Cada um de nós deve encontrar os filmes sublimes que lhe convêm porque nesse domínio a objectividade é praticamente impossível. Pela minha parte, confesso encontrar um grande prazer em quase todos os filmes de Couzinet, em certos melodramas religiosos de Léo Joannon e nalguns filmes bíblicos como esse delirante Prodigal (“Le Fils Prodigue”, 1956, de Richard Thorpe) onde a grande sacerdotisa do amor Astarteia procede a sacrifícios humanos enquanto belas raparigas semi-nuas cavalgam os cavalos de madeira de um carrossel e um rapagão faz soar o gongo. Mas não me perdoaria se esquecesse as xaropadas nórdicas, com banhos da meia-noite, pais nobres e angústias metafísicas (viram “L’Heure du Désir”, 1958, de Egil Holmsem?) e os italianos entre os quais se destacam gloriosamente o soberbo “Sous le Pont des Soupirs” (1954), onde podemos admirar um strip-tease à ponta de espada (na realidade duas heroínas batem-se em duelo rasgando uma à outra as camisas de dormir) e o incrível “Navire des Filles Perdues” (1953) de Raffaele Matarazzo, onde o sadismo, a revolta, o erotismo, a religião, o melodrama se conjugam para dar uma série de cenas de ligação problemática, exemplos de lugar-comum elevado pelo seu rigor ao nível da pura poesia involuntária.
Ainda mais inesperados são filmes que pertencem a uma nova categoria “o terror erótico”. Tomemos como exemplo um dos pontos máximos do género “Ein töter hing in Netz” (“Le Mort dans le Filet”, 1960, de Fritz Bottger). Aqui o fantástico e o semi-porno casam-se numa ausência de argumento, de construção, de realização, para nos proporcionar imagens inesquecíveis: o homem-aranha, o náufrago, a festa haitiana, o monstro a atacar a mulher que ama, os nus muito gratuitos, etc., etc.
Tenhamos a coragem de dizer bem alto que alguns filmezinhos semi-pornográficos que podíamos ver, nas máquinas em que se metia uma moeda, antes da guerra (os mais recentes estão em baixa acentuada) eram obras-primas. O que é que pode existir de mais misterioso e insólito do que essas senhoras de casaco de peles que desciam de automóveis burgueses para mergulharem em passos de dançarina em bosques onde estranhos rituais se desenrolavam? Muito mais do que excitantes fáceis e reles para velhos senhores, estas curtas-metragens constituíam a expressão mais sincera, mais pura da magia cinematográfica. O automatismo, o acaso objectivo, a revolta e o amor marcaram o mais poético encontro numa imensa máquina comercial que eles podem transformar de cima a baixo. Estes lampejos de espírito são evidentemente sufocados (e sê-lo-ão ainda por muito tempo) no mercantilismo e na propaganda reaccionária, mas eu vejo-os e só os vejo a eles. Do ecrã para mim, eles formam laços sensíveis de um grande alcance, chamas que só um pequeno número de poemas conseguiam até hoje igualar.
Esconjuro-vos: aprendam a ver os maus filmes, por vezes são sublimes.
* Le Surréalisme au cinéma, ed. Le Terrain vague, 1963, p. 275-276.

ANDRÉ BRETON: MANIFESTO SURREALISTA (1924)

Tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendido, a vida real, que afinal esta crença se perde. O homem, esse sonhador definitivo, cada dia mais desgostoso com seu destino, a custo repara nos objectos de seu uso habitual, e que lhe vieram por sua displicência, ou quase sempre por seu esforço, pois ele aceitou trabalhar, ou pelo menos, não lhe repugnou tomar sua decisão ( o que ele chama decisão! ) . Bem modesto é agora o seu quinhão: sabe as mulheres que possuiu, as ridículas aventuras em que se meteu; sua riqueza ou sua pobreza para ele não valem nada, quanto a isso, continua recém-nascido, e quanto à aprovação de sua consciência moral, admito que lhe é indiferente. SE conservar alguma lucidez, não poderá senão recordar-se de sua infância, que lhe parecerá repleta de encantos, por mais massacrada que tenha sido com o desvelo dos ensinantes. Aí, a ausência de qualquer rigorismo conhecido lhe dá a perspectiva de levar diversas vidas ao mesmo tempo; ele se agarra a essa ilusão; só quer conhecer a facilidade momentânea, extrema, de todas as coisas. Todas as manhãs, crianças saem de casa sem inquietação. Está tudo perto, as piores condições materiais são excelentes. Os bosques são claros ou escuros, nunca se vai dormir.
Mas é verdade que não se pode ir tão longe, não é uma questão de distância apenas. Acumulam-se as ameaças, desiste-se, abandona-se uma parte da posição a conquistar. Esta imaginação que não admitia limites, agora só se lhe permite actuar segundo as leis de uma utilidade arbitrária; ela é incapaz de assumir por muito tempo esse papel inferior, e quando chega ao vigésimo ano prefere, em geral, abandonar o homem ao seu destino sem luz.
Procure ele mais tarde, daqui e dali, refazer-se por sentir que pouco a pouco lhe faltam razões para viver, incapaz como ficou de enfrentar uma situação excepcional, como seja o amor, ele muito dificilmente o conseguirá. É que ele doravante pertence, de corpo e alma, a uma necessidade prática imperativa, que não permite ser desconsiderada. Faltará amplidão a seus gostos, envergadura a suas ideias. De tudo que lhe acontece e pode lhe acontecer, ele só vai reter o que for ligação deste evento com uma porção de eventos parecidos, nos quais não toma parte, eventos perdidos. Que digo, ele fará sua avaliação em relação a um desses acontecimentos, menos aflitivo que os outros, em suas consequências. Ele não descobrirá aí, sob pretexto algum, sua salvação.
Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares.
Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade. Eu a considero apropriada para manter, indefinidamente, o velho fanatismo humano. Atende, sem dúvida, à minha única aspiração legítima. Entre tantos infortúnios por nós herdados, deve-se admitir que a maior liberdade de espírito nos foi concedida. Devemos cuidar de não fazer mau uso dela. Reduzir a imaginação à servidão, fosse mesmo o caso de ganhar o que vulgarmente se chama a felicidade, é rejeitar o que haja, no fundo de si, de suprema justiça. Só a imaginação me dá contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a interdição terrível; é bastante também para que eu me entregue a ela, sem receio de me enganar (como se fosse possível enganar-se mais ainda ). Onde começa ela a ficar nociva, e onde se detém a confiança do espírito? Para o espírito, a possibilidade de errar não é, antes, a contingência do bem?
Fica a loucura. "a loucura que é encarcerada", como já se disse bem. Essa ou a outra. Todos sabem, com efeito, que os loucos não devem o seu internamento senão a um reduzido número de actos legalmente repreensíveis, e que, não houvesse estes actos, sua liberdade (o que se vê de sua liberdade ) não poderia ser ameaçada. Que eles sejam, numa certa medida, vítimas de sua imaginação, concordo com isso, no sentido de que ela os impele à inobservância de certas regras, fora das quais o género se sente visado, o que cada um é pago para saber. Mas a profunda indiferença de que dão provas em relação às críticas que lhe fazemos, até mesmo quanto aos castigos que lhes são impostos, permite supor que eles colhem grande reconforto em sua imaginação e apreciam seu delírio o bastante para suportar que só para eles seja válido. E, de fato, alucinações, ilusões, etc. são fonte de gozo nada desprezível. A mais bem ordenada sensualidade encontra aí sua parte, e eu sei que passaria muitas noites a amansar essa mão bonita nas últimas páginas do livro. A Inteligência de Taine, se dedica a singulares malefícios. As confidências dos loucos, passaria minha vida a provoca-las. São pessoas de escrupulosa honestidade, cuja inocência só tem a minha como igual. Foi preciso Colombo partir com loucos para descobrir a América. E vejam como essa loucura cresceu, e durou.
Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a erguer a meia-haste a bandeira da imaginação.
O processo da atitude realista deve ser instruído, após o processo da atitude materialista. Esta, aliás, mais poética que a precedente, implica da parte do homem um orgulho sem dúvida monstruoso, mas não uma nova e mais completa deposição. Convém nela ver, antes de tudo, uma feliz reacção contra algumas tendências derrisórias do espiritualismo. Enfim, ela não é incompatível com uma certa elevação de pensamento.
Ao contrário, a atitude realista, inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole France, parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade, ódio e insípida presunção. É ela a geradora hoje em dia desses livros ridículos, dessas peças insultuosas. Fortifica-se incessantemente nos jornais, e põe em xeque a ciência, a arte, ao aplicar-se em bajular a opinião nos seus critérios mais baixos; a clareza vizinha da tolice, a vida dos cães. Ressente-se com isso a actividade dos melhores espíritos; a lei do menor esforço afinal se impõe a eles como aos outros. Consequência divertida deste estado de coisas, em literatura, é a abundância dos romances. Cada um contribui com sua pequena "observação". Por necessidade de depuração o Sr. Paul Valéry propunha recentemente fazer antologia do maior número possível de começos de romances cuja insensatez ele muito esperava. Os mais famosos autores seriam chamados a participar. Tal ideia dignificava também Paul Valéry, que, não há muito, a propósito dos romances, me garantia que, ele, sempre se recusaria a escrever: "A marquesa saiu às cinco horas." Mas cumpriu ele a sua palavra?
Se o escrito de informação pura e simples de que a frase precipitada é exemplo, tem emprego corrente nos romances certamente é por não ir longe a ambição dos autores. O carácter circunstancial, inutilmente particular, de cada notação sua, me faz pensar que estão se divertindo, eles, à minha custa. Não me poupam nenhuma hesitação do personagem: será louro, como se chama, vamos sair juntos no verão? Outras tantas perguntas resolvidas decisivamente, ao acaso; só me restou o poder discricionário de fechar o livro, o que não deixo de fazer, ainda perto da primeira página. E as descrições! Nada se compara ao seu vazio; são superposições de imagens de catálogo, o autor as toma cada vez mais sem cerimónia, aproveita para me empurrar seus cartões postais, procura fazer-me concordar com os lugares-comuns:
A salinha onde foi introduzido o moço era forrada de papel amarelo: havia gerânios e cortinas de musselina nas janelas; o sol poente jogava sobre tudo isso uma luz clara... O quarto não continha nada de particular. Os móveis, de madeira amarela, eram todos velhos. Um sofá com grande encosto inclinado, uma mesa oval diante do sofá, um toucador, com espelho, entre as janelas, cadeiras encostadas às paredes, duas ou três gravuras sem valor, representando moças alemãs com pássaros nas mãos - eis a que se reduzia a mobília. (Dostoievski, Crime e Castigo )
Que o espírito se proponha, mesmo por pouco tempo, tais motivos, não tenho disposição para admiti-lo. Podem sustentar que este desenho clássico está no lugar certo e que neste passo do livro o autor tem seus motivos para me esmagar. Perde seu tempo, pois não entro no seu quarto. A preguiça, a fadiga dos outros não me prendem. Tenho da continuidade da vida uma noção instável demais para igualar aos melhores os meus momentos de depressão, de fraqueza. Quero que se calem, quando param de ressentir. E entendam bem que não incrimino a falta de originalidade pela falta de originalidade. Digo apenas que não faço caso dos momentos nulos de minha vida, que da parte de qualquer homem pode ser indigno de cristalizar aqueles que lhe parecem tais. Esta descrição de quarto, e muitas outras, permitam-me, digo: passo.
Ora, cheguei à psicologia, e com este assunto nem penso em brincar.
O autor pega-se com um personagem, e escolhido este, faz seu herói peregrinar pelo mundo. Haja o que houver, este herói, cujas acções são admiravelmente previstas, tem a incumbência de não desmanchar, parecendo porém sempre desmanchar, os cálculos de que é objeto. As vagas da vida podem parecer arrebata-lo, roda-lo, afunda-lo, ele sempre dependerá deste tipo humano formado. Simples partida de xadrez, da qual me desinteresso mesmo, sendo o homem, qualquer um, um medíocre adversário para mim. Não posso é suportar estas reles discussões de tal ou qual lance, desde que não se trata nem de ganhar nem de perder. E se o jogo não vale um caracol, se a razão objectiva prejudica terrivelmente, como é o caso, quem nela confia, não convirá fazer abstracção destas categorias? "É tão ampla a diversidade, que todos os tons de voz, todos os passos, tosses, assouos, espirros..." Se um cacho de uvas não tem duas sementes iguais, como querem que lhes descreva este bago pelo outro, por todos os outros, que dele faça um bago bom para comer? Esta intratável mania de reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável, embala os cérebros. O desejo de análise prevalece sobre os sentimentos. Disso resultam dilatadas exposições cuja força persuasiva reside na sua própria singularidade, e que iludem o leitor pelo recurso a um vocabulário abstracto, bastante mal definido, aliás. Se as ideias gerais que a filosofia se propõe até aqui debater, marcassem por aí sua incursão definitiva num domínio mais extenso, seria eu o primeiro a me alegrar. Mas por enquanto é só afectação; até aqui os ditos espirituosos e outras boas maneiras nos encobrem à porfia o verdadeiro pensamento que se busca ele próprio, em vez de se ocupar em obter sucessos. Parece-me que todo ato traz em si mesmo sua justificação, ao menos para quem foi capaz de comete-lo, que ele é dotado de um poder radiante que a mínima glosa, por natureza, enfraquece. Devido a esta última ele deixa mesmo, de certo modo, de se produzir. Não ganha nada com esta distinção. Os heróis de Stendhal caem aos golpes deste autor, apreciações mais ou menos felizes, que nada acrescentam à sua glória. Onde os encontraremos de fato, é onde Stendhal os perdeu.
Ainda vivemos sob o império da lógica, eis aí, bem entendido, onde eu queria chegar. Mas os procedimentos lógicos, em nossos dias, só se aplicam à resolução de problemas secundários. O racionalismo absoluto que continua em moda não permite considerar senão fatos dependendo estreitamente de nossa experiência. Os fins lógicos, ao contrário, nos escapam. Inútil acrescentar que à própria experiência foram impostos limites. Ela circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil faze-la sair. Ela se apoia, também ela, na utilidade imediata, e é guardada pelo bom senso. A pretexto de civilização e de progresso conseguiu-se banir do espírito tudo que se pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de quimera; a proscrever todo modo de busca da verdade, não conforme ao uso comum. Ao que parece, foi um puro acaso que recentemente trouxe à luz uma parte do mundo intelectual, a meu ver, a mais importante, e da qual se afectava não querer saber. Agradeça-se a isso às descobertas de Freud. Com a fé nestas descobertas desenha-se afinal uma corrente de opinião, graças à qual o explorador humano poderá levar mais longe suas investigações, pois que autorizado a não ter só em conta as realidades sumárias. Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar seus direitos. Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo interesse em captá-las, capta-las primeiro, para submete-las depois, se for o caso, ao controle de nossa razão. Os próprios analistas só têm a ganhar com isso. Mas é importante observar que nenhum meio está a priori designado para conduzir este empreendimento, que até segunda ordem pode ser também considerado como sendo da alçada dos poetas, tanto como dos sábios, e o seu sucesso não depende das vias mais ou menos caprichosas a serem seguidas.
Com justa razão Freud dirigiu sua crítica para o sonho. É inadmissível, com efeito, que esta parte considerável da actividade psíquica ( pois que, ao menos do nascimento à morte do homem, o pensamento não tem solução de continuidade, a soma dos momentos de sonho, do ponto de vista do tempo a considerar só o sonho puro, o do sono, não é inferior à soma dos momentos de realidade, digamos apenas: dos momentos de vigília ) não tenha recebido a atenção devida. A extrema diferença de atenção, de gravidade, que o observador comum confere aos acontecimentos da vigília e aos do sono, é caso que sempre me espantou. É que o homem, quando cessa de dormir, é logo o joguete de sua memória, a qual, no estado normal, se deleita em lhe retraçar fracamente as circunstâncias do sonho, em privar este de toda consequência actual, e em despedir o único determinante do ponto onde ele julga tê-lo deixado, poucas horas antes: esta esperança firme, este desassossego. Ele tem a ilusão de continuar algo que vale a pena. O sonho fica assim reduzido a um parêntese, como a noite. E como a noite, geralmente também não traz bom conselho. Este singular estado de coisas parece-me conduzir a algumas reflexões:
1.º nos limites onde exerce sua ação ( supõe-se que a exerce ) o sonho, ao que tudo indica, é contínuo, e possui traços de organização. A memória arroga-se o direito de nele fazer cortes, de não levar em conta as transições, e de nos apresentar antes uma série de sonhos do o sonho. Assim também, a cada instante só temos das realidades uma figuração distinta, cuja coordenação é questão de vontade. Importa notar que nada nos permite induzir a uma maior dissipação dos elementos constitutivos do sonho. Lamento falar disso segundo uma fórmula que exclui o sonho, em princípio. Quando virão os lógicos, os filósofos adormecidos? Eu gostaria de dormir, para poder me entregar aos dormidores, como me entrego aos que lêem, olhos bem abertos; para cessar de fazer prevalecer nesta matéria o ritmo consciente de meu pensamento. Meu sonho desta última noite talvez prossiga o da noite precedente, e seja prosseguido na próxima noite, com louvável rigor. É bem possível, como se diz. E como não está de modo nenhum provado que, fazendo isso, a "realidade" que me ocupa subsista no estado de sonho, que Lea não afunde no imemorial, porque não haveria eu de conceder ao sonho o que recuso por vezes à realidade, seja este valor de certeza em si mesma, que, em seu tempo, não está exposta a meu desmentido? Por que não haveria eu de esperar do indício do sonho mais do que espero de um grau de consciência cada dia mais elevado? Não se poderia aplicar o sonho, ele também, resolução de questões fundamentais da vida? Serão estas perguntas as mesmas num caso como no outro, e no sonho elas já estão? O sonho terá menos peso de sanções que o resto? Envelheço, e mais que esta realidade à qual penso me adstringir, é talvez o sonho, a indiferença que lhe dedico, que me faz envelhecer;
2.º. retomo o estado de vigília. Sou obrigado a considera-lo um fenómeno de interferência. Não apenas o espírito manifesta, nestas condições, uma estranha tendência à desorientação (é a história dos lapsos e enganos de toda espécie cujo segredo começa a nos ser entregue) mas ainda não parece que, em seu funcionamento normal, ele obedeça a outra coisa senão a sugestões que lhe vêm desta noite profunda das quais eu recomendo. Por mais bem condicionado que ele esteja, seu equilíbrio é relativo. Mal ousa expressar-se, e se o faz, é para limitar à constatação de que tal ideia, tal mulher, lhe faz impressão. Que impressão, seria incapaz de dize-lo, dando assim a medida de seu subjectivismo, e nada mais. Esta ideia, esta mulher, perturba-o, predispõem-no a menos severidade. Ela tem a acção de isola-lo um segundo de seu solvente e de deposita-lo no céu, como belo precipitado que ele pode ser, que ele é. Em desespero de causa, invoca ele o acaso, divindade mais obscura que as outras, à qual atribui todos os seus desvarios. Que me diz que o ângulo sob o qual se apresenta esta ideia que o afecta, o que ele ama no olho desta mulher não é precisamente o que o liga a seu sonho, o prende a dados que ele perdeu por sua culpa? E se isso fosse de outro modo, do que não seria ele capaz, talvez? Eu gostaria de dar-lhe a chave deste corredor;
3.º. o espírito do homem que sonha se satisfaz plenamente com o que lhe acontece. A angustiante questão da possibilidade não mais está presente. Mata, vi mais depressa, ama tanto quanto quiseres. E se morres, não tens certeza de despertares entre os mortos? Deixa-te levar, os acontecimentos não permitem que os retardes. Não tens nome. É inapreciável a facilidade de tudo.
Que razão, eu te pergunto, razão tão maior que outra, confere ao sonho este comportamento natural, me faz acolher sem reserva uma porção de episódios cuja singularidade, quando escrevo, me fulminaria? E no entanto, posso crer nos meus olhos, nos meus ouvidos: chegou o belo dia, esse bicho falou.
Se o despertar do homem é mais duro, se ele quebra muito bem o encanto, é que o levaram a ter uma raça ideia da expiação;
4.º. do momento em que seja submetido a um exame metódico, quando, por meios a serem determinados, se chegar a nos dar conta do sonho em sua integridade (isto supõe um disciplina da memória que atinge gerações; mesmo assim comecemos a registrar os fatos salientes), quando sua curva se desenvolve com regularidade e amplidão sem iguais, então se pode esperar que os seus mistérios, não mais o sendo, dêem lugar ao grande Mistério. Acredito na resolução futura destes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer.
Parto à sua conquista, certo de não consegui-la, mas bem despreocupado com minha morte, vou suportar um pouco os prazeres de tal posse.
Conta-se que todo o dia, à hora de dormir, Saint-Roux mandava colocar à porta de seu solar em Camaret um cartaz onde se lia: O POETA TRABALHA. Muito haveria ainda a dizer, mas de passagem, só quis aflorar um assunto que, por si só, necessitaria um alongado discurso e um maior rigor; voltarei a esse ponto. Desta vez, minha intenção era dizer a verdade sobre o ódio ao maravilhoso que grassa em certos homens, deste ridículo no qual o querem fazer cair. Falando claro: o maravilhoso é sempre belo, qualquer maravilhoso é belo, só mesmo o maravilhoso é belo.
No domínio literário, só o maravilhoso é capaz de fecundar obras dependentes de um género inferior, como o romance, e de modo geral, de tudo que participa da anedota. Uma prova admirável é O Monge, de Lewis. O sopro do maravilhoso o anima por inteiro. Bem antes de o autor ter libertado seus principais personagens de qualquer coerção temporal, já se percebe que estão prontos para agir com altivez sem precedente. Esta paixão da eternidade, que os exalta sem cessar, confere inesquecíveis acentos a seu tormento e ao meu. Entendo que este livro só exalta, do começo ao fim, e da forma mais pura do mundo, aquilo que do espírito aspira a deixar o chão, e que, despojado de uma parte insignificante de sua efabulação romanesca, à moda do tempo, constitui um modelo de justeza, de inocente grandiosidade. parece-me que não se fez melhor, e a personagem de Matilde, em particular, é a criação mais comovente que se possa pôr ao activo deste modo figurado em literatura. É menos um personagem que uma contínua tentação. E se um personagem não é uma tentação, o que é? Tentação extrema aquela. O "nada é impossível a quem sabe ousar" dá em O Monge toda a sua convincente medida. As aparições aí têm um papel lógico, pois que o espírito crítico não se apodera delas para contesta-las. Também o castigo de Ambrósio é tratado de maneira legítima, pois é finalmente aceito pelo espírito crítico como desenlace natural.
Pode parecer arbitrário que eu proponha este modelo, quando se trata do maravilhoso, do qual as literaturas no Norte e as literaturas orientais tiraram subsídios e mais subsídios, sem falar das literaturas propriamente religiosas de toda a parte. É que a maior parte dos exemplos que estas literaturas poderiam me fornecer estão eivadas de puerilidade, pela boa razão de serem dirigidas às crianças. Cedo elas são cortadas do maravilhoso, e mais tarde, não guardaram suficiente virgindade de espírito para sentirem extremo prazer com Pele de Asno. Por mais encantadores que sejam, o homem julgaria decair ao se nutrir de contos de fadas, e concordo que estes não são todos de sua idade. O tecido de adoráveis inverosimilhanças requer mais finura, à medida que se avança, e ainda se está à espera destas espécies de aranhas... Mas as faculdades não mudam radicalmente. O medo, a atracção do insólito, as chances, o gosto do luxo são molas às quais não se apela em vão. Há contos a escrever para adultos, contos de fadas, quase.
O maravilhoso não é o mesmo em todas as épocas; participa obscuramente de uma classe de revelação geral, de que só nos chega o detalhe: são as ruínas românticas, o manequim moderno ou qualquer outro símbolo próprio a comover a sensibilidade humana por algum tempo. Nestes quadros que nos fazem sorrir, no entanto sempre se pinta a inquietação humana, e é por isso que os levo a sério, que os julgo inseparáveis de algumas produções geniais, as quais, mais que as outras, estão dolorosamente impregnadas dessa inquietação. São os patíbulos de Villon, as gregas de Racine, os divãs de Baudelaire. Coincidem com um eclipse do gosto que sou feito para suportar, eu que tenho do gosto a ideia de um grande defeito. No mau gosto de minha época, procuro ir mais longe que os outros. Para mim, se eu tivesse vivido em 1820, para mim "a freira sangrenta", a mim, não poupar este sorrateiro e banal dissimulador de que fala o periódico Cuisin, a mim, a mim, percorrer em metáforas, como ele diz, todas as fases do "disco prateado". Por hoje, penso num castelo, cuja metade não está obrigatoriamente em ruína; este cabelo me pertence, eu o vejo num sítio agreste, não longe de Paris. Suas dependências não acabam mais e, quanto ao interior, foi terrivelmente restaurado, de modo a nada deixar a desejar, em matéria de conforto. Junto à porta, encoberta pela sombra das árvores, estão os automóveis, estacionados. Alguns de meus amigos aí estão, em permanência: eis o Louis Aragon que parte - ele só tem tempo para cumprimentar-nos; Philippe Soupault se levanta com as estrelas Paul Eluard, nosso grande Eluard, ainda não voltou. Eis Robert Desnos e Roger Vitrac, que decifram no parque um velho edital sobre o duelo; Georges Auric, Jean Paulhan, Max Morise, que rema tão bem, Benjamin Péret, em suas equações de pássaros; e Joseph Delteil; e Jean Carrive; e Georges Limbour (há uma fileira de Georges Limbour); e Marcel Noll; eis T. Traenkel que nos acena de seu balão cativo, Georges Malkine, Antonin Artaud, Francis Gerard, Pierre Naville, J. A . Boiffard, depois Jacques Baron e seu irmão, belos e cordiais, tantos outros ainda, e mulheres deslumbrantes, palavra. Estes jovens não podem se recusar nada, seus desejos são, para a riqueza, ordens. Francis Picabia vem nos visitar e, na semana passada, recebeu-se na galeria dos espelhos um tal Marcel Duchamp que ainda não se conhecia. Picasso caça aí por perto. O espírito de desmoralização ergueu domicílio no castelo, e é com ele que tratamos sempre que há problema de relação com nossos semelhantes, mas as portas estão sempre abertas, e sabeis, não se começa "agradecendo" às pessoas. De mais a mais, a solidão é vasta, não nos encontramos muito. Pois o essencial não é sermos senhores de nós mesmos, das mulheres, do amor também?
Vão atribuir-me uma mentira poética; cada um vai dizer que moro na Rua Fontaine, e que não vai beber desta água. Na verdade! mas este castelo cujas honras lhe faço, tem ele certeza que seja uma viagem? E se, não obstante, o palácio existisse? Meus hóspedes estão aí para responderem por isso; seu capricho é a estrada luminosa que aí conduz. Vivemos de fato à nossa fantasia, quando estamos lá. E como o que um faz poderia incomodar o outro, ali, ao abrigo da procura sentimental e dos encontros ocasionais?
O homem põe e dispõe. Depende dele só pertencer-se por inteiro, isto é, manter em estado anárquico o bando cada vez mais medonho de seus desejos. A poesia ensina-lhe isso. Traz nela a perfeita compensação das misérias que padecemos. Ela pode ser também uma ordenadora, bastando que ao golpe de uma decepção menos íntima se tenha a ideia de tomá-la ao trágico. Venha o tempo quando ela decrete o fim do dinheiro e parta, única, o pão do céu para a terra! Haverá ainda assembleias nas praças públicas, e movimentos dos quais não pensaste participar. Adeus selecções absurdas, sonhos de abismo, rivalidades, longas paciências, a evasão das estações, a ordem artificial das ideias, a rampa do perigo, tempo para tudo! Basta se Ter o trabalho de praticar a poesia. Não é a nós que compete, que já vivemos dela, o esforço de fazer prevalecer o que guardamos para nossa mais ampla inquietação?
Não importa se há desproporção entre esta defesa e a ilustração que vai segui-la. Tratava-se de remontar às fontes de imaginação poética, e mais ainda, ficar aí. Não tenho a pretensão de ter feito isso. É preciso muito domínio sobre si, para querer se estabelecer nestas recuadas regiões onde tudo parece andar tão mal, e com maior razão, para querer aí conduzir alguém. E nunca se tem certeza de aí estar em absoluto. Como não se vai gostar, fica-se disposto a se deter em outra parte. A verdade é que agora uma flecha indica a direcção destes lugares e que alcançar a meta verdadeira só depende de resistência do viajante.
Conhece-se, pouco mais ou menos, o caminho percorrido. Tive o cuidado de contar, no decurso de um estudo sobre o caso de Robert Desnos, intitulado: ENTRADA DOS MÉDIUNS, que eu tinha sido levado a "fixar minhas atenções sobre frases mais ou menos parciais, que em plena solidão, quase pegando no sono, ficam perceptíveis para o espírito, sem ser possível descobrir-lhes uma determinação prévia". Eu mal acabara de tentar uma aventura poética, com o mínimo de chances, isto é, minhas aspirações eram as mesmas de hoje, mas eu tinha fé na lentidão de elaboração para fugir a contactos inúteis, contactos que eu reprovava intensamente. Era o pudor do pensamento, de que me sobra ainda alguma coisa. No fim de minha vida, com dificuldade chegarei a falar como falam todos, culpa de minha voz e de meus gestos escassos. A virtude da palavra (da escrita: bem maior) me parecia ligada à faculdade de encurtar de modo marcante a exposição (pois era uma exposição) de alguns poucos fatos, poéticos ou outros, substanciais para mim. Em minha ideia, não era outro o processo usado por Rimbaud. Eu compunha, e o meu empenho de variedade merecia melhor sorte, os últimos poemas do Mont de Pieté, isto é, conseguia tirar das linhas em branco desse livro um partido incrível. Essas linhas eram o olho fechado sobre operações de pensamento, que, julgava eu, deviam ser ocultadas do leitor. Não era trapaça, mas sim, gosto de precipitar as coisas. Eu obtinha a ilusão de uma cumplicidade possível, cada vez menos dispensável para mim. Eu pegara o vicio de afagar imoderadamente as palavras pelo espaço admitido em torno delas, por suas tangências com outras inumeráveis palavras não pronunciadas por mim. O poema FLORESTA-NEGRA marca exactamente este estado de espírito. Passei seis meses a escrevê-lo e, podem acreditar, não descansei um só dia. Mas tratava-se da estima que eu então me dedicava, não é bastante, compreendam. Adoro estas confissões estúpidas. Naquele tempo, a pseudopoesia cubista procurava se implantar, mas saíra desarmada do cérebro de Picasso, e quanto a mim, eu era tido como tão enfadonho quanto a chuva (ainda sou). Eu desconfiava, aliás, que do ponto de vista poético, eu estava no caminho errado, mas eu me safava como podia, desafiando o lirismo, a golpes de definição e de receitas (os fenómenos Dada não tardariam a se manifestar), e fingindo encontrar uma aplicação da poesia na publicidade (eu sustentava que o mundo acabaria, não por um belo livro, mas por uma bela propaganda do inferno e do céu).
Na mesma época, um homem, tão ou mais enfadonho que eu, Pierre Reverdy, escrevia:
A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer da comparação, mas da aproximação de duas realidade mais ou menos remotas. Quanto mais longínquas e justas forem as afinidades de duas realidades próximas, tanto mais forte será a imagem - mais poder emotivo e realidade poética ela possuirá... etc.
Estas palavras, se bem que sibilinas para os profanos eram indicadores muito fortes, e sobre elas meditei longamente. Mas a imagem era fugidia. A estética de Reverdy, estética toda a posteriori, fazia-me tomar os efeitos pelas causas. Entrementes, fui obrigado a renunciar definitivamente a meu ponto de vista.
Certa noite então, antes de adormecer, percebi, nitidamente articulada a ponto de ser impossível mudar-lhe uma palavra, mas bem separada do ruído de qualquer voz, uma frase bem bizarra que me alcançava sem trazer indício dos acontecimentos aos quais, segundo o testemunho de minha consciência, eu estava preso, nessa ocasião, frase que me pareceu insistente, frase, se posso ousar, que batia na vidraça. Rapidamente tive a sua noção, e já me dispunha a passar adiante quando o seu carácter orgânico me reteve. Na verdade, esta frase me espantava; infelizmente não a guardei até hoje, era algo como: "Há um homem cortado em dois pela janela", mas não poderia haver ambiguidade, acompanhada como estava pela fraca representação visual de um homem andando, e seccionado a meia altura por uma janela perpendicular ao eixo de seu corpo. Fora de dúvida era a simples aprumação no espaço de um homem debruçado à janela. Mas esta janela tendo seguido o deslocamento do homem vi que se tratava de uma imagem de tipo bastante raro e logo pensei em incorporá-la a meu material de construção poética. Assim que lhe concedi este crédito ela deu lugar a uma sucessão quase ininterrupta de frases que não me surpreenderam menos e me deixaram sob a impressão de uma tal gratuidade que me pareceu ilusório o império que até então eu mantinha sobre mim mesmo, e só pensei então em liquidar a interminável disputa travada em mim (Knut Hamsun põe na dependência da fome este tipo de revelação que me assaltou, e talvez não esteja ele errado (o fato é que nessa época eu não comia todos os dias). Com toda certeza são de fato as mesmas manifestações que ele relata nestes termos:
"No dia seguinte acordei cedo. Estava ainda escuro. Meus olhos estavam abertos fazia tempo, quando ouvi o relógio do apartamento inferior bater cinco horas. Quis novamente dormir mas não consegui, eu estava completamente desperto e mil coisas baralhavam na minha cabeça. De repente me vieram uns bons trechos, próprios para utilização num esboço, num folhetim; subitamente, por acaso, achei frases muito bonitas, frases como jamais escreverei. Eu as repetia lentamente, palavra por palavra, eram excelentes. E vinham mais outras. Levantei-me, peguei lápis e papel na mesa atrás de minha cama. É como se eu tivesse rompido uma veia, uma palavra seguia outra, colocava-se em seu lugar, surgiam as réplicas, em meu cérebro, eu gozava profundamente. Os pensamentos me vinham tão rapidamente e fluíam tão abundantemente que eu perdia uma porção de detalhes delicados, porque meu lápis não podia andar tão depressa, e entretanto eu me apressava, a mão sempre em movimento, eu não perdia um minuto. As frases continuavam a brotar em mim, eu estava prenhe de meu assunto".
Apollinaire afirmava que os primeiros quadros de Chirico haviam sido pintados sob a influência de distúrbios cenestésicos (enxaquecas, cólicas).
Tão ocupado estava eu com Freud nessa época, e familiarizado com os seus métodos de exame que eu tivera alguma ocasião de praticar em doentes durante a guerra, que decidi obter de mim o que se procura obter deles, a saber, um monólogo de fluência tão rápida quanto possível sobre o qual o espírito crítico do sujeito não emita nenhum julgamento, que não seja, portanto, embaraçado com nenhuma reticência, e que seja tão exactamente quanto possível o pensamento falado. Parecia-me, ainda me parece - a maneira como me chegara a frase do homem seccionado o comprovava - que a velocidade do pensamento não é superior à da palavra e que ele não desafia forçadamente a língua, nem mesmo a caneta que corre. Foi com estas disposições que Philippe Soupault, a quem eu comunicara estas primeiras conclusões, e eu começamos a escrevinhar, pouco nos importando com o que pudesse suceder literariamente. A facilidade de realização fez o resto.
No fim do primeiro dia podíamos ler umas cinquenta páginas obtidas por este meio, e começar a comparação de nossos resultados. No conjunto, os de Soupault e os meus mostravam notável analogia: mesmo vício de construção, falhas similares, mas também, de cada lado, a ilusão de um estro maravilhoso, muita emoção, escolha considerável de imagens de uma tal qualidade que não teríamos sido capazes de preparar uma só delas, mesmo com muito empenho, um pitoresco muito especial, e de um lado e de outro, alguma proposição de pungente burlesco. As únicas diferenças entre nossos dois textos me pareceram corresponder essencialmente a nossos temperamentos recíprocos, o de Soupault menos estático que o meu, e se ele me permite esta leve crítica, ao fato de Ter ele cometido o erro de distribuir, ao alto de certas páginas, e sem dúvida por espírito de mistificação, algumas palavras à guisa de títulos. Em compensação, devo-lhe a justiça de dizer que ele se opôs sempre, com toda energia, a qualquer retoque, à mínima correção ao curso de toda passagem desse género que me parecia até descabida. Tinha ele toda razão nisso. É com efeito muito difícil apreciar em seu justo valor os diversos elementos presentes, diga-se mesmo, é impossível apreciá-los numa primeira leitura. A vós que escreveis, estes elementos, na aparência, vos são tão estranhos quanto a outro qualquer, e naturalmente desconfiais. Falando poeticamente, eles se reconhecem sobretudo por um alto grau de absurdo imediata, sendo o próprio deste absurdo, num exame mais aprofundado, dar lugar a tudo que há de admissível, de legítimo no mundo: a divulgação de certo número de propriedades e de fatos não menos objectivos, em suma, que os outros.
Em homenagem a Guillaume Apollinaire, que morrera há pouco, e que por diversas vezes nos parecia ter obedecido a um arrebatamento desse género, sem entretanto ter aí sacrificado medíocres meios literários, Soupault e eu designamos com o nome de SURREALISMO o novo modo de expressão pura, agora à nossa disposição, e com o qual estávamos impacientes para beneficiar nossos amigos. Creio não ser mais necessário, hoje, repisar esta palavra, e que a acepção em que a tomamos acabou por prevalecer sobre a acepção apollinairiana. Ainda com maior razão poderíamos ter-nos apossado da palavra SUPERNATURALISMO, empregada por Gerard de Nerval na dedicatória de Filles de Feu. Com efeito, parece que Nerval possuiu às mil maravilhas o espírito ao qual recorremos, enquanto Apollinaire não possuía senão a letra, ainda imperfeita, do surrealismo, tendo sido incapaz de lhe traçar um esboço teórico que valha a pena. Eis duas frases de Nerval que acerca disso me parecem bem significativas:
Vou explicar-lhe, meu caro Dumas, o fenómeno que você citou acima. Como você sabe, há certos contistas que não podem inventar sem se identificarem com os personagens de sua imaginação. Você sabe com que convicção nosso velho amigo Nodier narrava como ele tivera a desgraça de ser guilhotinado na época da Revolução; ficava-se de tal modo persuadido que se ficava querendo saber como ele conseguira recolocar sua cabeça.
... E já que você teve a imprudência de citar um soneto composto neste estado de devaneio onírico SUPERNATURALISTA, como diriam os alemães, vai ouvi-los todos. Não são nada mais obscuros do que a metafísica de Hegel ou as MEMORÁVEIS de Swedenborg, e perderiam encanto se fossem explicados, se a coisa fosse possível, conceda-me ao menos o mérito da expressão...
Só com muita fé poderiam nos contestar o direito de empregar a palavra SURREALISMO no sentido muito particular em que o entendemos, pois está claro que antes de nós esta palavra não obteve êxito. Defino-a pois uma vez por todas.
SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral.
ENCICL. Filos. O Surrealismo repousa sobre a crença na realidade superior de certas formas de associações desprezadas antes dele, na onipotência do sonho, no desempenho desinteressado do pensamento. Tende a demolir definitivamente todos os outros mecanismos psíquicos, e a se substituir a eles na resolução dos principais problemas da vida. Deram testemunho de SURREALISMO ABSOLUTO os srs. Aragon, Baron, Boiffard, Breton, Carrive, Crevel, Delteil, Desnos, Eluard, Gerard, Limbour, Malkine, Morise, Naville, Noll, Péret, Picon, Soupault, Vitrac.
Parece que são, até agora, os únicos, e não haveria engano, não fosse o caso apaixonante de Isidore Ducasse, sobre o qual me faltam elementos. E certamente, não considerando senão superficialmente seus resultados, bom número de poetas poderiam passar por surrealistas, a começar por Dante, e, em seus melhores dias, Shakespeare. No curso das diferentes tentativas de redução, em que empenhei, do que se chama, por abuso de confiança, o génio, nada encontrei que se possa finalmente atribuir a outro processo que não seja este.
As NOITES de Young são surrealistas do começo ao fim; infelizmente é um padre que fala, mau padre, sem dúvida, mas padre. Swift é surrealista na maldade. Sade é surrealista no sadismo. Chateaubriand é surrealista no exotismo. Constant é surrealista em política. Hugo é surrealista quando não é tolo. Desbordes-Valmore é surrealista em amor. Bertrand é surrealista no passado. Rabbe é surrealista na morte. Poe é surrealista na aventura. Baudelaire é surrealista na moral. Rimbaud é surrealista na prática da vida e alhures. Mallarmé é surrealista na confidência. Jarry é surrealista no absinto. Nouveau é surrealista no beijo. Saint-Pol-Roux é surrealista no símbolo. Fargue é surrealista na atmosfera. Vaché é surrealista em mim. Reverdy é surrealista em sua casa. Saint-John Perse é surrealista a distância. Roussel é surrealista na anedota. Etc.
Insisto, eles nem sempre são surrealistas, neste sentido que descubro neles um certo número de ideias preconcebidas, às quais, bem ingenuamente, eles se apegavam. Apegavam porque ainda não tinham ouvido a voz surrealista, a que continua a pregar à véspera da morte e acima das tempestades, porque não queriam servir somente para orquestrar a maravilhosa partitura. Eram instrumentos soberbos demais, e por isso nem sempre produziram som harmonioso.
Nós, porém, que não nos dedicamos a nenhum trabalho de filtração, que nos fizemos em nossas obras os surdos receptáculos de tantos ecos, modestos aparelhos registradores que não se hipnotizam com o desenho traçado, talvez sirvamos uma causa mais nobre. Assim devolvemos com probidade o "talento" que nos atribuem. Falem-me do talento deste metro de platina, deste espelho, desta porta, e do céu, se quiserem.
Não temos talento, perguntem a Philippe Soupault:
"As manufacturas anatómicas e as habitações baratas destruindo as mais importantes cidades".
A Roger Vitrac:
"Recém-invocara eu o mármore-almirante (A Mesa de Mármore era um Tribunal instalado no Palácio de Justiça em Paris, realizando suas sessões numa imensa mesa de mármore, que lhe deu o nome; era de sua alçada o julgamento de militares, e sua jurisdição tinha três divisões: o almirantado, as florestas e águas, e a área do condestável) quando este virou nos calcanhares como um cavalo que se empina diante da estrela polar e me indicou no plano de seu chapéu bicorne uma região onde eu devia passar a minha vida".
A Paul Eluard:
"Conto uma história bem conhecida, releio um poema célebre: estou apoiado a um muro, orelhas verdejantes, lábios calcinados".
A Max Morise:
"O urso das cavernas e sua companhia que mia, o volante e seu valete no vento, o grão-chanceler com sua mulher, o espantalho e seu amigo alho, a fagulha com agulha, o carniceiro e seu irmão Carnaval, o varredor com o seu tapa-olho, o Mississipi e seu sapo, o coral e o colar, o Milagre e seu santo por favor desapareçam da superfície do mar".
A Joseph Delteil:
"Ai de mim! Creio na virtude das aves. E basta uma pena para me matar de rir!".
A Louis Aragon:
"Durante uma interrupção da partida, quando os jogadores, reunidos, rodeavam a poncheira escaldante, perguntei à árvore se ainda tinha sua fita vermelha".
A mim mesmo, que não pude me impedir de escrever as linhas serpentinas, alucinantes, deste prefácio.
Perguntem a Robert Desnos que, dentre nós, foi talvez quem mais se aproximou da verdade surrealista, aquele que, em obras ainda inéditas e ao longo de múltiplas experiências às quais prestou, justificou plenamente a esperança que eu depositava no surrealismo e me intima a esperar muito dele ainda. Hoje em dia Desnos fala surrealista à discrição. A prodigiosa agilidade de que ele dispõe para seguir oralmente seu pensamento nos vale, quanto nos apraz, discursos esplêndidos, e que se perdem, Desnos tendo mais que fazer do que fixa-los. Ele lê em si como em livro aberto, e nada faz para reter as folhas que se desvanecem no vento de sua vida.
(Trancrição: Alexandre Linares; HTML por José Braz para o Marxists Internet Archive)
ANDRÉ BRETON E DIEGO RIVERA:
POR UMA ARTE REVOLUCIONÁRIA INDEPENDENTE (1938)

Pode-se pretender sem exagero que nunca a civilização humana esteve ameaçada por tantos perigos quanto hoje. Os vândalos, com o auxílio de seus meios bárbaros, isto é, deveras precários, destruíram a civilização antiga num canto limitado da Europa. Actualmente, é toda a civilização mundial, na unidade de seu destino histórico, que vacila sob a ameaça das forças reaccionárias armadas com toda a técnica moderna. Não temos somente em vista a guerra que se aproxima. Mesmo agora, em tempo de paz, a situação da ciência e da arte se tornou absolutamente intolerável.
2 - Naquilo que ela conserva de individualidade em sua génese, naquilo que acciona qualidades subjectivas para extrair um certo fato que leva a um enriquecimento objectivo, uma descoberta filosófica, sociológica, científica ou artística aparece como o fruto de um acaso precioso, quer dizer, como uma manifestação mais ou menos espontânea da necessidade. Não se poderia desprezar uma tal contribuição, tanto do ponto de vista do conhecimento geral (que tende a que a interpretação do mundo continue), quanto do ponto de vista revolucionário (que, para chegar à transformação do mundo, exige que tenhamos uma ideia exacta das leis que regem seu movimento). Mais particularmente, não seria possível desinteressar-se das condições mentais nas quais essa contribuição continua a produzir-se e, para isso, zelar para que seja garantido o respeito às leis específicas a que está sujeita a criação intelectual.
3 - Ora, o mundo actual nos obriga a constatar a violação cada vez mais geral dessas leis, violação à qual corresponde necessariamente um aviltamento cada vez mais patente, não somente da obra de arte, mas também da personalidade "artística". O fascismo hitlerista, depois de ter eliminado da Alemanha todos os artistas que expressaram em alguma medida o amor pela liberdade, fosse ela apenas formal, obrigou aqueles que ainda podiam consentir em manejar uma pena ou um pincel a se tornarem os lacaios do regime e a celebrá-lo de encomenda, nos limites exteriores do pior convencionalismo. Excepto quanto à propaganda, a mesma coisa aconteceu na U.R.S.S. durante o período de furiosa reacção que agora atingiu seu apogeu.
4 - É evidente que não nos solidarizamos por um instante sequer, seja qual for seu sucesso actual, com a palavra de ordem: "Nem fascismo nem comunismo", que corresponde à natureza do filisteu conservador e atemorizado, que se aferra aos vestígios do passado "democrático". A arte verdadeira, a que não se contenta com variações sobre modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades interiores do homem e da humanidade de hoje, tem que ser revolucionária, tem que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade, mesmo que fosse apenas para libertar a. criação intelectual das cadeias que a bloqueiam e permitir a toda a humanidade elevar-se a alturas que só os génios isolados atingiram no passado. Ao mesmo tempo, reconhecemos que só a revolução social pode abrir a via para uma nova cultura. Se, no entanto, rejeitamos qualquer solidariedade com a casta actualmente dirigente na U.R.S.S., é precisamente porque no nosso entender ela não representa o comunismo, mas é o seu inimigo mais pérfido e mais perigoso.
5 - Sob a influência do regime totalitário da U.R.S.S. e por intermédio dos organismos ditos "culturais" que ela controla nos, outros países, baixou no mundo todo um profundo crepúsculo hostil à emergência de qualquer espécie de valor espiritual. Crepúsculo de abjecção e de sangue no qual, disfarçados de intelectuais e de artistas, chafurdam homens que fizeram do servilismo um trampolim, da apostasia um jogo perverso, do falso testemunho venal um hábito e da apologia do crime um prazer. A arte oficial da época estalinista reflecte com uma crueldade sem exemplo na história os esforços irrisórios desses homens para enganar e mascarar seu verdadeiro papel mercenário.
6 - A surda reprovação suscitada no mundo artístico por essa negação desavergonhada dos princípios aos quais a arte sempre obedeceu, e que até Estados instituídos sobre a escravidão não tiveram a audácia de contestar tão totalmente, deve dar lugar a uma condenação implacável. A oposição artística é hoje uma das forças que podem com eficácia contribuir para o descrédito e ruína dos regimes que destroem, ao mesmo tempo, o direito da classe explorada de aspirar a um mundo melhor e todo sentimento da grandeza e mesmo da dignidade humana.
7 - A revolução comunista não teme a arte. Ela sabe que ao cabo das pesquisas que se podem fazer sobre a formação da vocação artística na sociedade capitalista que desmorona, a determinação dessa vocação não pode ocorrer senão como o resultado de uma colisão entre o homem e um certo número de formas sociais que lhe são adversas. Essa única conjuntura, a não ser pelo grau de consciência que resta adquirir, converte o artista em seu aliado potencial. O mecanismo de sublimação, que intervém em tal caso, e que a psicanálise pôs em evidência, tem por objecto restabelecer o equilíbrio rompido entre o "ego" coerente e os elementos recalcados. Esse restabelecimento se opera em proveito do "ideal do ego" que ergue contra a realidade presente, insuportável, os poderes do mundo interior, do "id", comuns a todos os homens e constantemente em via de desenvolvimento no futuro. A necessidade de emancipação do espírito só tem que seguir seu curso natural para ser levada a fundir-se e a revigorar-se nessa necessidade primordial: a necessidade de emancipação do homem.
8 - Segue-se que a arte não pode consentir sem degradação em curvar-se a qualquer directiva estrangeira e a vir docilmente preencher as funções que alguns julgam poder atribuir-lhe, para fins pragmáticos, extremamente estreitos. Melhor será confiar no dom de prefiguração que é o apanágio de todo artista autêntico, que implica um começo de resolução (virtual) das contradições mais graves de sua época e orienta o pensamento de seus contemporâneos para a urgência do estabelecimento de uma nova ordem.
9 - A ideia que o jovem Marx tinha do papel do escritor exige, em nossos dias, uma retomada vigorosa. É claro que essa ideia deve abranger também, no plano artístico e científico, as diversas categorias de produtores e pesquisadores. "O escritor, diz ele, deve naturalmente ganhar dinheiro para poder viver e escrever, mas não deve em nenhum caso viver e escrever para ganhar dinheiro . . . O escritor não considera de forma alguma seus trabalhos como um meio. Eles são objectivos em si, são tão pouco um meio para si mesmo e para os outros que sacrifica, se necessário, sua própria existência à existência de seus trabalhos . . . A primeira condição da liberdade de imprensa consiste em não ser um ofício. Mais que nunca é oportuno agora brandir essa declaração contra aqueles que pretendem sujeitar a actividade intelectual a fins exteriores a si mesma e, desprezando todas as determinações históricas que lhe são próprias, dirigir, em função de pretensas razões de Estado, os temas da arte. A livre escolha desses temas e a não-restrição absoluta no que se refere ao campo de sua exploração constituem para o artista um bem que ele tem o direito de reivindicar como inalienável. Em matéria de criação artística, importa essencialmente que a imaginação escape a qualquer coação, não se deixe sob nenhum pretexto impor qualquer figurino. Àqueles que nos pressionarem, hoje ou amanhã, para consentir que a arte seja submetida a uma disciplina que consideramos radicalmente incompatível com seus meios, opomos uma recusa inapelável e nossa vontade deliberada de nos apegarmos à fórmula: toda licença em arte.
10 - Reconhecemos, é claro, ao Estado revolucionário o direito de defender-se contra a reação burguesa agressiva, mesmo quando se cobre com a bandeira da ciência ou da arte. Mas entre essas medidas impostas e temporárias de auto-defesa revolucionária e a pretensão de exercer um comando sobre a criação intelectual da sociedade, há um abismo. Se, para o desenvolvimento das forças produtivas materiais, cabe à revolução erigir um regime socialista de plano centralizado, para a criação intelectual ela deve, já desde o começo, estabelecer e assegurar um regime anarquista de liberdade individual. Nenhuma autoridade, nenhuma coação, nem o menor traço de comando! As diversas associações de cientistas e os grupos colectivos de artistas que trabalharão para resolver tarefas nunca antes tão grandiosas unicamente podem surgir e desenvolver um trabalho fecundo na base de uma livre amizade criadora, sem a menor coação externa.
11 - Do que ficou dito decorre claramente que ao defender a liberdade de criação, não pretendemos absolutamente justificar o indiferentismo político e longe está de nosso pensamento querer ressuscitar uma arte dita "pura" que de ordinário serve aos objetivos mais do que impuros da reacção. Não, nós temos um conceito muito elevado da função da arte para negar sua influência sobre o destino da sociedade. Consideramos que a tarefa suprema da arte em nossa época é participar consciente e activamente da preparação da revolução. No entanto, o artista só pode servir à luta emancipadora quando está compenetrado subjectivamente de seu conteúdo social e individual, quando faz passar por seus nervos o sentido e o drama dessa luta e quando procura livremente dar uma encarnação artística a seu mundo interior.
12 - Na época actual, caracterizada pela agonia do capitalismo, o artista, sem dar sequer a sua dissidência social uma forma manifesta, vê-se ameaçado da privação do direito de viver ((?)) e de continuar sua obra pelo bloqueio de todos os seus meios de difusão. É natural que se volte então para . . . as organizações estalinistas que aí lhe oferecem a possibilidade de escapar a seu isolamento . . . mas a sua renúncia a tudo que pode constituir sua mensagem própria e as complacências que essas organizações exigem dele em troca de algumas possibilidades materiais lhe proíbem manter-se nelas, por menos que a desmoralização seja impotente para vencer seu carácter. É necessário, desde este instante, que ele compreenda que seu lugar está além, não entre aqueles que traem ((? . . . ao mesmo tempo . . .) ) a causa da Revolução ao mesmo tempo ((?)) , a causa do homem, mas entre aqueles que dão provas de sua fidelidade inabalável aos princípios dessa Revolução, entre aqueles que, por isso, permanecem como os únicos ((?)) qualificados para ajuda-la a realizar-se e para assegurar por ela . . . a livre expressão ulterior de todas as manifestações do génio humano. O que queremos: a independência da arte para a revolução a revolução - para a liberação definitiva da arte.
13 - O objectivo do presente apelo é encontrar um terreno para reunir todos os defensores revolucionários da arte, para servir a revolução pelos métodos da arte e defender a própria liberdade da arte contra os usurpadores da revolução. Estamos profundamente convencidos de que o encontro nesse terreno é possível para os representantes de tendências estéticas, filosóficas e políticas razoavelmente divergentes. Os marxistas podem caminhar aqui de mãos dadas com os anarquistas, com a condição que uns e outros rompam implacavelmente com o espírito policial reaccionário, quer seja representado por Josef Stálin ou por seu vassalo Garcia Oliver.
14 - Milhares e milhares de pensadores e de artistas isolados, cuja voz é coberta pelo tumulto odioso dos falsificadores arregimentados, estão actualmente dispersos no mundo. Numerosas pequenas revistas locais tentam agrupar a sua volta forças jovens, que procuram vias novas e não subvenções. Toda tendência progressiva na arte é difamada pelo fascismo como uma degenerescência. Toda criação livre é declarada fascista pelos estalinistas. A arte revolucionária independente deve unir-se para a luta contra as perseguições reaccionárias e proclamar bem alto seu direito à existência. Uma tal união é o objectivo da Federação Internacional da Arte Revolucionária Independente (F.I.A.R.I.) que julgamos necessário criar.
15 - Não temos absolutamente a intenção de impor cada uma das ideias contidas neste apelo, que nós mesmos consideramos apenas um primeiro passo na nova via. A todos os representantes da arte, a todos seus amigos e defensores que não podem deixar de compreender a necessidade do presente apelo, pedimos que ergam a voz imediatamente. Endereçamos o mesmo apelo a todas as publicações independentes de esquerda que estão prontas a tomar parte na criação da Federação Internacional e no exame de suas tarefas e métodos de acção.
16 - Quando um primeiro contacto internacional tiver sido estabelecido pela imprensa e pela correspondência, procederemos à organização de modestos congressos locais e nacionais. Na etapa seguinte deverá reunir-se um congresso mundial que consagrará oficialmente a fundação da Federação Internacional. O que queremos: a independência da arte para a revolução a revolução, - para a liberação definitiva da arte.
México, 25 de Julho de 1938
(Trancrição: Alexandre Linares; HTML por José Braz para o Marxists Internet Archive)
[1] Cf. L’Avent-Scène du Cinema, nº 27-28, Junho-Julho 1963 e L’Occhio tagliato, ed. Martano, Turim, 1972.
* Louis Aragon , em Le Film, Setembro de 1918; texto acompanhado de uma “chapelada” de apresentação de Delluc que merece ser reproduzida:
“É com grande alegria que publicamos estas páginas novas de Louis Aragon. Novas, sim, são-no pelas ideias e as impressões que transmitem. Novas igualmente pelo sabor penetrante onde se reconhece o estilo da nossa jovem literatura que desperta. Louis Aragon, poeta, manifesta-se nessas jovens revistas de vanguarda, como Sic, onde aparecem, ao lado de alguns oportunistas, sensibilidades de alto gosto. Os seus espíritos delicados gostam muito destas compilações de ensaios modernos que revelam com tanta facilidade o que o amanhã fará, ou, infelizmente, o que o passado não fez.
“Foi aí, confesso, que encontrei as compreensões mais fulgurantes do cinema.
“Os jovens espíritos audaciosos estão no cinema perfeitamente à vontade. Reconhecem nele a primeira realização das suas investigações Não conseguiu o cinema já explicar todas as pretensas desordens da pintura? Do impressionismo ao cubismo, todos os jogos de tons, de linhas e de planos são prodigiosamente analisados pela moving picture. Também a poesia aí se concilia e mesmo a música. Mas só muito raramente se diz tudo isso. Porque de que serve falar, quando se tem praticamente a certeza de não ser ouvido?

* Texto atribuído por Sadoul a Aragon, publicado primeiro em inglês na revista Transition, depois em versão francesa no nº 9-10 de La Révolution surréaliste (1 Outubro 1927), finalmente incluído no tomo II – Documents surréalistes – de L’Histoire du surréalisme de Maurice nadeau, Seuil, 1948, p. 85-95.
* Anicet ou le Panorama, romance, Gallimard, 1921, reed. « Le Livre de poche », 1969, p. 117-119.
* Mémoires d’un surréaliste, p. 72-73, Editions de la Jeune Parque, 1968
* Nota publicada em La Nouvelle Revue française (nº 220, 1 de Janeiro 1932) e recolhida depois por Artaud em Le Théâtre et son double (Gallimard, 1938). O texto aqui reproduzido segundo o tomo IV das Oeuvres complètes d’Artaud (Gallimard, 1964, p. 165-168); ver também a edição de bolso do Théâtre et son double, coll. “Idées”, Gallimard 1972, p. 209-213.
* Robert Desnos, Documents, 1929, nº7. Texto incluído em Cinema, Gallimard, 1966, p. 189-192 (apresentação de André Tchernia)
* “Documentos surrealistas”, tomo 2 de L’Histoire du surréalisme, de Maurice Nadeau, ed. du Seuil, Paris, 1948, p. 167-178. Texto reproduzido igualmente no nº 27-28 de L’Avant-scène Cinéma, no livro de G. Rondolino.
* In Les Cahiers du móis, nº 16-17, “Cinéma », ed. Emile-Paul Frères, 1925, p. 90-91.
* In (Cinema), Formes et Couleurs, Lausanne, 1946, nº 6.
* Le Surréalisme au cinéma, ed. Le Terrain vague, 1963, p. 275-276.
textos reunidos no catálogo do Famafest 2004.